De algum canto do pote
O lugar era a Terra, o palco de extraordinárias magias. Não se engane: o que aqui vou contar está além dos seus sentidos, então desperte aquilo que ainda é desconhecido.
Uma sombra rodopiava insistente acima da minha cabeça quando eu ainda não conseguia distinguir do que se tratava. Era uma parede branca, talvez um pouco mais gelada do que as paredes brancas convencionais. Não arrisquei tocar meus temerosos dedos naquela parede, embora a sombra assobiasse em meus ouvidos uma cantiga aterradora, do tipo que não esquecemos facilmente. Eu ainda não a esqueci. Ela desejava atrair minha atenção. Não a parede. A sombra bailante!
Do que se tratava, afinal? Minhas pernas foram tomadas por uma imobilidade contida em desespero e curioso atrevimento em almejar descobrir os mistérios circundantes da Terra. Que sentimento avassalador e ousado perpassava meus nervos furiosos e amedrontados. A pupila dilatava-se alvoroçada e meus tímpanos já não queriam resistir à canção. Aquela canção… Você também consegue escutá-la?
Um passo tímido e resguardado para a briga ou para a fuga, para o que fosse necessário. Outro passo confiante, não uma confiança viril, mas uma confiança de continuar ouvindo o silêncio. O silêncio das respostas. Senti um gosto adocicado na boca, desde a ponta da língua até atingir o fundo. E foi aí, nesta região, que começou a gotejar ácido, queimando a garganta profundamente e impedindo-me de gritar o grito gutural que eu necessitaria urrar para expressar meu terrível horror.
Era uma simples curiosidade e a morte queria levar-me por isto? Desejei não ter nascido, pois não valia a pena viver sem investigar os mistérios que me rondavam. Minha garganta fora cortada. Eu podia sentir uma cabeça sem corpo e um corpo sem cabeça. Uma sensação exótica, porque não acho palavra melhor para descrevê-la. Onde está meu corpo? Onde está minha cabeça?
A pergunta poderia ser melhor, mas eu realmente os procurava em desespero inaudível. Até que comecei a refletir sobre qual parte de mim estaria na posse dessa consciência fétida e escandalosa que confabulava sobre as partes do meu corpo. Corpo! Isso. Cadê o meu corpo? O que era aquela sombra que agora não via mais? Cadê a parede gélida e branca? Nem com o meu medo eu podia mais contar como companhia, pois o que mais eu teria a perder? Nada!
Tive um breve estalo insidioso e imaginei que estaria dentro do pote. O pote colorido, você sabe! Aquele pote que prende consciências de pessoas que viveram mal na Terra. Comecei a pensar em todas as horas que passei planejando uma boa morte, em todos os livros que ensinavam a arte da morte segura, em todas as cartas que escrevi.
Eu gostava de fazer aquilo. Agora estou presa num pote, num vazio cheio de vazio e isto é tão angustiante… Nunca fui tão criativa quanto agora, é bem verdade. Eu preciso imaginar tudo, relembrar, recalcular, recrudescer, entorpecer-me de bebidas ilusórias. Não há chaves, não há compromissos, não há absolutamente nada.
A morte é simplória assim? Ou apenas estou sendo castigada por adiantá-la em meu percurso? Sim, eu o fiz. Não me julgue, por favor! Eu vi uma borboleta presa numa teia de aranha e indignei-me ferozmente com tal conjuro. Um borboleta fisgada por uma aranha! E eu apenas via sua sombra balançando para lá e para cá, como se fosse uma criança embalada e confiante na própria sorte.
Coloquei vidros na corda. Eu queria sofrer mais para ser mais lembrada. Isso foi tão absurdo. Estou completamente esquecida no vazio infinito. Agora estou aqui inventando você. Você é uma ótima companhia! É. Você é uma invenção minha. Não se iluda com o que eu conto ou escondo de você. Daqui a pouco eu mudo a história e tudo fica bem, você e eu. Você me faz companhia e agora… Agora eu posso viver ao seu lado. Você consegue escutar a cantiga?