PRISIONEIRO DE UMA DIMENSÃO

   Corria o ano de 1958, eu era um menino ainda sem muita experiência na vida, ainda no curso primário estudava em uma escolinha particular perto de casa, mesmo tendo apenas dez anos eu ia sozinho. Era aquela época em que se acreditava em papa-figo, velho do saco e outras coisas que assustavam as crianças. Eu morria de medo, tinha todo o cuidado e ouvia as recomendaçoes dos meus pais, mas tinha hora que qualquer criança se descuidava, por mais cuidadosa que fosse. Não sei se era verdade, mas eu ouvia muitos relatos de que pegaram uma criança, tiraram o fígado dela e comeram. Diziam que quem tinha esse problema de necessitar comer fígado de criança era porque a orelha crescia e só agindo com essa prática é que aliviava a situação.

   Eu morava numa casa simples que ficava num beco, meu pai era pobre e trabalhava numa oficina de uma repartição ligada ao porto, às vezes passava dois ou três meses sem receber dinheiro e a gente sofria com isso. Mas dava prá ir levando e fazendo compras fiado. Certa noite eu estava na entrada do beco sentado na calçada quando um senhor saltou de um ônibus fretado e me pediu para segurar um pacote e acompanhá-lo até mais na frente. Fiz o que ele pediu sem medir as consequências e o pior é que não tinha ninguém da família ali perto para me impedir, só algumas pessoas conversando que não se deram conta da situação. E lá vai eu levando o pacote e acompanhando o desconhecido que me havia oferecido uns trocados. Quando viramos na esquina ele simplesmente tomou o pacote e me empurrou para dentro de um carro que estava parado num local ermo. Com o empurrão eu machuquei a perna e caí sobre o banco traseiro do veículo, momento em que perdi a noção e nada mais vi.

   Despertei sentado em um sofá com algumas pessoas do meu lado e em uma casa estranha. A princípio pensei que fosse minha casa, mas percebi que existiam móveis que eu não conhecia, era de dia e me veio imediatamente a lembrança do ocorrido a noite. Fiquei sem entender e um homem que estava do meu lado que dizia ser meu pai me obrigava a comer uma comida em um prato, o que eu recusava. Sabia que aquele estranho não era meu pai, contestei mas ele perguntou se eu estava ficando louco. Nisso surgiu uma senhora vindo da cozinha, ela era muito parecida com a minha mãe. Pensei, será minha mãe mesmo? Mas está tão diferente! Minha vontade era sair dali correndo, mas esperei uma boa oportunidade. Alguns garotos estavam ali, diziam que eram meus irmãos, eu sabia que não era verdade, pois conhecia muito bem meus dois irmãos que tenho e não pareciam nada com aqueles quatro que ali estavam.

   Na primeira oportunidade escapuli dessa casa, comecei a andar sem rumo, as ruas eram diferentes, as pessoas que eu via completamente estranhas, que horror! Dei algunas voltas pelas redondezas mas não estava conseguindo êxito, não achava o caminho da minha verdadeira casa, terminei voltando para onde estava e procurar explicações para o que estava acontecendo. Nesse ínterim percebi que meu corpo não era o mesmo, eu havia crescido, era um rapaz, o que até me animou um pouco, mas na verdade eu queria era mesmo voltar para o meu lar, para a minha casinha simples, porém acolhedora, ficar junto da minha família, essas coisas. Uma mistura de desapontamento com alegria me invadiu a alma, eu começava a me acostumar com aquela situação estranha, perguntava onde estava mas ninguém me dizia nada e até diziam que eu estava variando. Só eu sabia o que estava acontecendo, ninguém imaginava o que se passava na minha cabeça.

   Enfim eu me acostumei com tudo aquilo, aquela casa, aquele homem que dizia ser meu pai, aquela senhora que também dizia ser minha mãe, até que ela era realmente muito parecida com a minha mãe, mas eu sabia que não era ela, a verdadeira. Isso me fez aceitar aquela situação e aqueles momentos com aquelas pessoas passaram a ser uma constante. Eu tinha o meu quarto, as minhas roupas, os meus brinquedos, tudo ali no quarto, mas eu me olhei novamente, meu corpo estava se transformando, eu já era um adulto. Comecei a rir de mim mesmo, minha "mãe" ali de lado também ria, eu a olhava atentamente e até ficava em dúvida, será que é a minha mãe mesmo? Mas não tinha outra solução, acabei por esquecer quem eu realmente era, não lembrava mais de nada. Entrou na casa uma moça muito bonita e veio me abraçar, eu retribuí, achei até gostoso aquele abraço e me envolvi com ela, nos beijamos, foi quando dei conta que era minha namorada. Nos abraçamos com mais intensidade, beijos e mais beijos e eu ali sem entender com perfeição o que estava ocorrendo, pois momentaneamente me veio a lembrança de quem eu era, onde morava. Aquela casinha simples em um beco, a história do papa-figo, aquele ônibus chegando e dele descendo um homem com um pacote e me entregando para que levasse e acompanhasse ele. Comecei a gritar desesperado, foi quando me dei conta de que estava dentro de um carro, havia sido jogado ali como se fosse também um pacote. Era noite, isso mesmo, aquela mesma noite quando senti que estava em perigo, a minha perna doendo com o impacto no banco traseiro do carro. Eu pensei que tinha perdido os sentidos, mas pelo jeito não, reuni forças, me desvencilhei daquele sujeito e saí correndo rua afora com destino a minha casa. Na entrada do beco parei, ainda assustado, foi quando as pessoas que ali estavam ficaram me olhando e perguntando o que tinha acontecido. Menti, disse que não foi nada e entrei beco adentro, não queria que minha mãe soubesse. Fui dormir pensando naquele fato e tive a nítida impressão que visitei uma dimensão que eu não conhecia e nem sabia que existia.

Moacir Rodrigues
Enviado por Moacir Rodrigues em 08/08/2022
Reeditado em 09/08/2022
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