A última paixão...
É muito difícil explicar a morte. Na verdade impossível! Mas estou morrendo. No meio do êxtase. No meio dos bálsamos que nos traz felicidade. Naquele momento que não se procura sentido: sentimos e pronto. Somos envolvidos e seja o que Deus quiser. Uma sensação desconhecida e fatal.
Luzes e os sons que se distanciam dos meus sentidos anunciando o meu fim. Estou me desfalecendo a cada segundo. Com certeza isso é a morte.
Tentarei antes que expire a última gota de oxigênio e de vida explicar essa estória que se inicia pelo fim.
Eu vivia a vida queimando energia trabalhando intensamente em busca de satisfazer os desejos da glória oferecidos pelas grandes cidades. Queria a todo custo subir na tribuna onde só pode subir os vencedores.
Lutava pelo conforto de uma pequena família com unhas e dentes. Mantinha em dia o pagamento das despesas e os impostos; domésticas inclusive a exigência social de atualizar do terno e gravata, sempre!
Fazia da carteira um saco sem fundo que se procurava costurar dia após dia. Hora após hora. Segundo após segundo...
Até que um dia arrebentou de vez. Não havia mais jeito de consertar a carteira.
Ela virou um enorme saco sem fundos. E o mundo mostrou-me suas garras afiadas.
Morte a quem perde a carteira. Morte a identidade. Enterrem. Ele já está morto...
Acordei numa nova dimensão e numa bela madrugada. Com uma garrafa na mão caminhando por uma linda rua de um bairro conhecido. Outrora minha casa. Agora uma passagem para algum lugar e por algum motivo só o destino tinha os registros e as explicações.
Suguei a última gota de álcool sem medo e com medo. Isso porque não bebia a mais de duas décadas. Mas seja lá o que for que me fazia voltar a beber – queria também me esquentar naquela madrugada.
Com a garrafa na mão perambulava por uma das ruas mais expressivas da cidade. Grifes de todas as partes do mundo desfilavam nas vitrines que ficavam imóveis enquanto eu passava. Marcas mundiais que representavam o jeito de ser das famílias que moravam na ponta da pirâmide social.
Lojas e prédios adormecidos como cenário de fundo. Nem mesmo um cachorro – vira lata ou não caminhava comigo. Estava só. Muito só.
E na direção da brisa seguia meus passos. Como a vela mestre de um veleiro, meu peito em direção oposta, ficava cheia de vento e de dor. Uma dor silenciosa. A dor de quem não entendia absolutamente nada do que estava acontecendo.
Como isso tinha acontecido? Em segundos toda uma vida mudará de direção. Era como ir caminhando por uma rua cheia de luz e arrebentar o nariz em algo invisível. Algo que não se vê e não se entende.
A garrafa secou. A calma do meu coração também. Ele começou a bater forte. Acelerado. Queria pular. Explodir ou implodir. Qualquer que fosse sua intenção estava claro que eu não aguentaria. O compasso de suas batidas já estava fora de compasso.
Senti que seria a minha hora. E quanto quis gritar. Gritar qualquer coisa. Talvez socorro...
E neste instante vejo uma mulher andando pelo meio da rua, como eu, e vindo em minha direção. Surgiu do nada. Até alguns instantes atrás não tinha ninguém naquela rua – madrugada vazia!
Bonita. Alta e de pele bem clara. Sorridente. Sorriu pra mim!
Sorri pra ela. Meu sorriso amarelo e de espanto.
Ela pergunta. O que você está fazendo sozinho por aqui?
Fiquei meio sem jeito. Afinal essa é a fala primeira de um homem num primeiro encontro. E ela tinha tomado a dianteira.
Respondi meio sem jeito. Estou vindo de uma festa.
Onde estão as amigas? Sai sozinho para comemorar meu aniversário, respondi.
E você, perguntei?
Gosto da noite, ela respondeu...
Vai para algum lugar específico. Talvez para minha casa, daqui a pouco ela disse com ar de pura sedução.
E o namorado? Não namoro, respondeu com voz firme.
Como é o seu nome? Ela respondeu com uma pergunta - isso importa.
Vamos para algum lugar e continuar a comemorar seu aniversário, disse ela.
Isso é que eu chamo de presente de aniversário, pensei alto. Muito alto que se transformou num grito no infinito da madrugada.
Tudo bem, respondi.
Conhece algum lugar aqui perto?
Sorri e respondi. Sim.
Vamos pegar meu carro ali na próxima quadra.
Gritamos juntos. A noite será nossa.
Saímos abraçados como se há muito tempo fossemos namorados. Caminhamos aos beijos e abraços até o carro.
Liguei os motores. No plural porque ligamos o motor do carro, o dela e o meu! E ainda liguei o coração novamente. Esperança de uma nova vida. Sonhos e desejos aquecendo o espírito. Pensei! Porque não – uma última paixão.
Quem estava comandando este roteiro? Eu, o destino, ou seria mais um golpe de sorte na minha vida.
No bar o garçom anotou o pedido - cervejas, e uma poção de batata frita.
Então você é pintora.
Que bacana. Também tento dar umas pinceladas. Nunca fui a uma escola de artes.
Certa vez consegui vender um quadrinho. Era um quadro em acrílico de um gato sobre uma caixa de madeira velha. Até que estava mais ou menos...
E seu nome. Você pulou esta resposta, insisti.
O que é um nome, ela disse sorrindo. Vamos combinar assim.
Você é meu Chu e eu sou sua Chu, combinado!
Mas assim não tem diferença; esquece a etiqueta.
É apenas um jeito carinhoso de nos tratar, disse ela!
Pede à conta que vou te levar na minha casa.
Chu, você é maluca! Só nos conhecemos há algumas horas. E se eu for um maníaco. E se eu te sequestrar.
Ela soltou uma gargalhada seguida de um...você! Não se preocupe. O meu sexto sentido diz que você é gente boa.
Fiquei meio cismado com sua confiança no sexto sentido, mas deixei pra lá.
Será que ela me achava um homem frágil. Bom uma coisa era visível – ela com seus quase um metro e oitenta e com aquele corpo esculpido por Deus, não demonstrava nenhuma insegurança.
Conservados pelas melhores academias, merecia todo o respeito do mundo. Quando cheguei a sua casa num bairro elegante da cidade precisei estacionar o carro duas quadras aproximadamente de seu prédio, o que foi bom. Neste pequeno intervalo pude me recompor e pensar no que estava acontecendo. Uma canoa afundara e outra surgira do lado para me salvar. Algo muito estranho. Era sincronismo demais.
O silêncio da noite era quebrado por latidos de cães. Na verdade, uma orquestra canina nos recepciona naquele bairro a poucos minutos do centro. Mesmo sendo uma casa. Tomávamos cuidados para não fazer muito barulho e acordar os vizinhos. Claro que ansiedade rondava meu espírito.
Lembrei de alguns truques aprendidos em artes marciais para respirar. Deram certo.
Mais calmo, continuei agradecendo aquela grata surpresa. Beijos e abraços cada vez mais intensos.
E a intimidade crescia em valores exponenciais. Parecia que vivíamos há algumas décadas juntos. Parecia que éramos perdidamente apaixonados. Não! Mais que isso: parecia que vivíamos uma paixão passional. Carne pela carne.
O sofá tremeu. O abajur se revoltou e apagou. O chão resolveu entrar em cena e desarrumou o tapete. Entre beijos e mais beijos; fui desnudando aquela arte das artes criadas por Deus.
Cabelos loiros até os ombros. Olhos azuis e um rosto fino. Olhar faceiro. Misto de sedução e adolescência. Lábios e boca de dar água na boca.
Ah! O que era aquilo. Um anjo enviado para alegrar os últimos momentos de um moribundo.
Hipótese descartada: anjos não têm sexo. E esse anjo era visivelmente feminino. Seus seios que cabiam na palma da mão. Assim como uma Pêra madura. Seu corpo proporcionalmente recheado para a perfeição de cada curva. Arquitetura divina.
Seu pé. Suas unhas coloridas. Mãos. Eram perfeitos...
Sua voz era uma música com um atributo a mais. Além do som gostoso, trazia em suas notas um desejo de se falar ao pé do ouvido. Aquela intimidade seguida de uma ligeira mordidinha na orelha. Sim. O chão estremeceu. Nós trememos e dormimos ali mesmo – parte dos nossos corpos no tapete e parte naqueles tacos – únicas testemunhas daquela noite de comemoração inesperada.
Quando acordei estava um ano mais velho e só. Chamei por Chu. Nenhuma resposta. Vi que não tinha mais ninguém na casa. Olhei e nada. Nem mesmo as roupas dela estavam visíveis. Sai na grande varanda e descobri uma rede. Balancei meus sonhos e minha confusão por alguns momentos. Nada ficou claro. Nada se esclareceu...
Entrei no banheiro e abri o chuveiro. Com os olhos fechados recebi aquela Santa Água em minha cabeça. Rezei. Meditei e rezei. Não havia entendido nada, mas agradeci.
O sabonete de cheiroso gostoso desencadeou, uma serie de imagens na minha cabeça. Cenas de amores e desamores que passei por essa vida afora. Uma sensação conhecida tomou conta de mim. Dúvidas. Dúvidas. Desconfiança. Onde ela estava. Porque não tinha nenhuma foto dela naquela residência. Inferno estava vivendo todas as loucuras de uma doença chamada paixão.
Por sorte, lembrei também de coisas boas, cenas familiares onde a água purifica, une, alimente e serve para muitas brincadeiras.
Que sensação boa. Desliguei o chuveiro e fui para o quarto. Quando me deitei na cama senti algo muito frio e macio. O lençol que cobria a cama parecia ser de seda – seda legitima. Por instantes pensei: quantos passaram por aqui? Senti culpa, pelo pensamento maldoso!
Encostei o rosto. Estiquei o corpo e dormi profundamente. Não sei por quanto tempo.
Acordei com alguns beijos suaves na minha nuca. Virei e lá estava ela. Mais linda.
Perfumada. Mais saborosa. Era noite e ninguém tinha pressa.
Navegamos juntos, de corpo e alma o reino do amor. Como não tínhamos pressa falamos de sonhos e de desejos. Ela disse que gostaria de ficar na terra para sempre. Afirmação esquisita, mas novamente não questionei. Disse que queria ser uma pintora famosa e ter um grande ateliê.
Eu confidenciei o meu sonho: queria uma casinha pequena em algum canto civilizado onde não tivesse que pagar aluguel.
Lá tentaria me desenvolver nas artes plásticas: pintura, escultura, literatura e outras coisas ligadas ao ilimitado mundo da arte.
Como é bom conversar. Foi conversando que realizamos todos os sonhos. Ela parecia muito feliz. Eu também estava. Principalmente quando aquela mulher incrível afirmou com todas as letras: escolhi você. Se for ficar na terra, quero que você seja meu marido por toda a eternidade.
Mais uma vez aquela conversa me deixou com uma sensação estranha.
Levantei-me e coloquei a roupa. Ela também.
Fechamos o apartamento e caminhamos até o estacionamento. No carro os beijos e abraços não se repetiram.
Algo estranho estava no ar. Eu sabia e sentia.
Lentamente dirigi o carro aparentemente sem rumo. Ambos estávamos em silêncio.
Ela, com seus dedos de pianista faziam um leve cafuné na minha cabeça.
Chegamos. Não sei como e nem sei por quê. No lugar exato onde nos conhecemos.
O relógio marcava duas horas e cinquenta e três minutos. Madrugada gelada para uma noite de primavera. No mesmo horário e lugar aonde nos vimos pela primeira vez. Sincronismo demais para a razão entender.
O carro quase que teleguiado parou naquele mesmo lugar. Em frente ao número cento e cinquenta e seis daquela famosa rua. E eu havia nascido em mil novecentos e cinquenta e seis. Sincronismo e coincidência demais para a razão entender. A mesma sensação de taquicardia que havia me deixado em pânico na noite anterior recomeçara. Tudo que eu passara antes da minha musa aparecer recomeçara.
Eu olhei para os olhos da Chu e perguntei. O que está acontecendo. Ela disse. Você sabe.
Como assim perguntei.
Você sabe. Olhe bem dentro dos meus olhos!
Quando olhei, senti um arrepio.
Vi um anjo. Talvez uma Santa. Era muita luz. Tanta luz que ofuscava.
Um anjo enorme e lindo. Corpo e asas prateadas.
Sorri meio sem jeito e lhe disse: você me enganou.
Não te enganei.
Era meu dever vir escoltá-lo.
Mas por você e por mim realizei seu último desejo...