Depois do Natal: Um conto para não ser lido à noite (cap XXII - NINGUÉM PERCEBEU)
Ninguém percebeu – nem mesmo as crianças que tudo descobrem – que aquela construção, que era a oficina do sapateiro, tinha alguns pontos fracos. Problemas em sua fundação... deteriorada não só pelo tempo, mas principalmente, pelos cálculos malfeitos da engenharia malformada...
Por isso a história não terminou com o sepultamento daqueles fétidos falecidos da fatalidade…
O corre-corre para atender aos gritos das crianças e o burburinho que se formou anulou o senso de perigo e a atenção daquela gente. Isso ajuda a explicar a sequência de tragédias que se sucederam... envolvendo, agora não mais o casal viajante, mas os curiosos que depois dos fatos, ainda foram curiosar o local da tragédia onde foram encontrados mortos o casal e o sapateiro.
É verdade, também, que ninguém entra numa casa, num apartamento, num salão ou seja lá onde for, analisando a solidez da construção. Todos imaginam que qualquer edificação que está em pé, assim permanecerá, inabalável, eternamente... isso ajuda a explicar alguns acidentes... algumas tragédias de engenharia de baixo custo!!!
Caso contrário, deveria haver na entrada de cada edificação, uma plaquinha de alerta: Antes de entrar verifique se a estrutura está firme... pois ela pode desabar sobre você!
Ou então: O engenheiro responsável não se responsabiliza por qualquer desabamento que possa ocorrer!
Mas isso só confirma o fato: acidentes sempre ocorrem.
E ocorreram! A oficina despencou sobre aqueles curiosos. Só uma morte, mas vários feridos, empresados entre as madeiras corroídas pelos cupins...
E qualquer um de nós sempre imagina que os acidentes vão ocorrer apenas com os outros.
Aliás, a gente não imagina que eles ocorrerão. Em nosso cotidiano não pensamos nos acidentes!!!
Nossos afazeres cotidianos e rotineiros nos levam a agir rotineiramente e, por isso, imaginamos que tudo segue a mesma rotina cotidiana!
Acontece que os acidentes não seguem rotinas... eles são a quebra da rotina. São acidente, justamente, porque quebram a rotina! Por isso nos surpreendem.
Mesmo quando nos lembramos de comentar, ou vemos alguma tragédia nos noticiários, ficamos imaginando – e por que não dizer? – torcendo para não fazermos parte da próxima lista de mortos e desaparecidos.
E, também por isso, perdemos o senso do perigo, nos distraímos e somos surpreendidos pelas tragédias e fatalidades.
Um pouco mais de atenção, por parte daquela turba de curiosos que retornou ao local em que, aos gritos, as crianças localizaram os cadáveres, teria evitado aquela nova tragédia. Grande para as proporções da cidade, mas insignificante para a mídia que anda à cata de sensacionalismo. Por isso o que ocorreu ali não foi noticiado por todo o país, em rede nacional... mal saiu em uma nota do informativo local...
Aliás, raramente o que ocorre nas pequenas localidades do interior merece as páginas ou as atenções dos noticiários. A vida do interior é relegada em favor dos absurdos dos grandes centros.
Se as grandes empresas de comunicação olhassem para o interior do país veriam o emaranhado de notícias que poderiam ser veiculadas. Notícias, por vezes mais interessantes, mais vibrantes, em alguns casos mais trágicas, que até superam o absurdo dos grandes centros... – como aquele rapaz que voltava da casa da namorada, à noite e não percebeu o buraco no asfalto... e foi arremessado da moto, contra a mureta da ponte... nem seus pais sentiram sua falta, pois era comum que passasse a noite na casa da futura esposa... assim, como a estrada era de pouco movimento, só foi encontrado no dia seguinte, quando aquele leiteiro, cantarolante sobre sua carroça, trazia o leite para a cidade…
Talvez por ser uma cidadezinha do interior é que tenha permanecido quase no esquecimento do anonimato tudo o que ali aconteceu, depois do Natal...
(Continua.....)