tempo

Absorta com as lembranças da noite anterior, tão intensa, percebi num frêmito o rosto anônimo que me olhou brevemente dentro do vagão do trem. Nos entreolhamos e logo tornou a desviar o olhar na multidão. Nossos olhares se cruzaram e, ainda que por um minuto apenas, partilhamos uma imensa cumplicidade quanto às grandes verdades da vida: eu penetrei o seu mundo e ele também devassou o meu interior. Não pude esconder daqueles olhos os meus bem guardados segredos, nem a minha relutante lembrança da mudez lasciva antes do amanhecer.

Aquela intimidade durou apenas um minuto, mas equivaleu a uma eternidade. Antes daquele anônimo olhar eu era singular e me pertencia por inteiro, mas, depois dele, o estranho e eu nos pertencemos.

Além disso, de alguma forma eu sinto que aquele minuto estancou, ficou na minha lembrança para sempre, perpetuado como uma fotografia, ou a pretensa eternidade das lápides.

O trem continuou sua viagem, e cada um de nós desceu numa estação, sem olhar para trás. Porque não seria certo.

BiaSil
Enviado por BiaSil em 04/07/2022
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