UMA ESTRANHA MULHER QUE POVOAVA OS MEUS SONHOS

   Eu era aquele tipo de rapaz que se acostumava com as brincadeiras dos colegas do colégio e dos amigos do bairro, estávamos sempre envolvidos em "aventuras" em qualquer tipo de situação, naquela época da adolescência não pensávamos em nada a não ser em nos divertimos e tudo da forma a qual mais gostávamos, porém sem sair dos limites e do respeito a quem quer que fosse. Éramos jovens de um tempo completamente diferente do atual, andávamos livremente pelas ruas a qualquer hora do dia ou da noite sem sermos incomodados por malfeitores e sem termos o que de mais moderno existe hoje, um aparelho celular para comunicação imediata. Se precisássemos entrar em contato com algum amigo tínhamos que ir na casa dele, muitas vezes acertávamos os encontros quando saíamos das aulas ou durante as reuniões nas esquinas. Tudo era planejado com antecedência e quando alguma coisa não seria como havíamos planejado tínhamos que correr contra o tempo e ir na casa de um ou de outro para detalhar a alteração ocorrida, isso dentro da maior naturalidade e sem aborrecimentos. Brigas e discussões dificilmente tínhamos, éramos muito apegados e o mínimo que poderia acontecer era um ou outro "ficar de mal" e sem se falar por algum tempo. Tínhamos aquela coisa de juntarmos as pontas dos dedos indicador com o médio e dizermos: "corte" aqui. Tempos depois era refeita a amizade e tudo voltava ao normal. Bem diferente de hoje, concordam?

   Certo dia, me lembro bem, era dia de finados e estava eu com um grupo de amigos zanzando em um cemitério do bairro, coisa que encarávamos como um "divertimento" nessa época para passarmos o tempo. Sempre fazíamos isso. Num certo momento, naquele calor da brincadeira de olharmos as fotos nas lápides das pessoas mortas, um dos colegas me empurrou e eu acabei caindo e esbarrando em um túmulo ficando de cara com uma foto de uma pessoa falecida recentemente. Por alguns instantes fiquei olhando aquela pessoa e percebi que era jovem. O incrível é que notei um ar diferente na imagem e até um sorriso, o que estranhei. Comentei com eles e atentamos para olharmos com mais atenção. Estava tudo normal e o semblante da moça era de seriedade. Saimos dali normalmente como se nada tivesse acontecido, esquecemos aquilo, porém durante o sono da noite eu sonhei com aquele episódio. Na manhã seguinte falei sobre o sonho e a gente riu a vontade.

   Passou-se algum tempo, mas aquele fato ocorrido no cemitério não me saiu da mente e novamente voltei a sonhar com aquela cena do empurrão e da foto bem a minha frente, deu até para gravar mentalmente as feições daquela jovem, pois eu havia reparado bem o seu semblante, não lembro bem, mas podia ter mais ou menos a mesma idade nossa. Voltei a comentar com os amigos e eles só faziam rir e diziam que ela iria me perseguir. Levamos na brincadeira e mais um certo tempo se passou sem lembrarmos disso. Continuamos nossas vidas nos divertindo, curtindo com toda intensidade, alguns companheiros de colégio não mais vi, comecei a trabalhar em um órgão público, me mudei de bairro e me casei, tendo mantido algumas das velhas amizades do bairro onde fomos adolescentes.

   Voltava do travalho num certo final de tarde quando o ônibus quebrou no percurso, os passageiros ficaram dentro do coletivo aguardando que o próximo passasse para embarcarmos, o que durou algum tempo. Nesse ínterim eu fiquei absorto olhando pela janela as pessoas que passavam pela calçada, foi nesse momento que uma jovem parou e me fez imaginar que acenou para mim. Ela sorriu e continuou seus passos. Fiquei sem entender e tentando descobrir quem era e se a conhecia. A minha mente trabalhou tanto que acabei ligando a sua imagem àquela da foto no cemitério. Não sei porque pensei nisso, mas depois raciocinando direitinho até que tinha uma semelhança com ela, o que me deixou intrigado. Outro ônibus chegou e todos embarcaram nele, inclusive eu, mas o meu pensamento ficou naquela figura estranha que me tirou o sossego. Só faltava agora eu sonhar com ela novamente. E foi exatamente o que aconteceu durante o sono noturno, lá estava ela passando pela calçada, parando e acenando para mim e depois continuando o seu trajeto. Acordei assustado com a esposa perguntando o que era e eu disse apenas que foi um sonho ruim sem comentar do que se tratava, essa história ela desconhecia. Depois de tantos anos uma cena se repetindo e me deixando atordoado, mas procurei esquecer e esperar que tudo não passasse de uma ilusão fruto da minha mente que havia armazendo essa criatura lá num cantinho do meu cérebro.

   Passaram-se anos sem que eu sonhasse mais com aquela pessoa da foto no cemitério. Estava até levando a sério o que disse aquele amigo da juventude quando afirmou que ela iria me perseguir e realmente era o que estava acontecendo. Eu já estava há quase vinte anos casado e já tinha dois filhos e nunca esperei que esse tipo de coisa me atormentasse. Foi quando resolvi voltar ao bairro onde vivi e cresci para procurar aqueles velhos companheiros de brincadeiras sem precisar dizer a verdade para minha esposa, ela poderia não entender bem e interpretar de outra forma, achar que eu tinha algum caso com ela. Disse apenas que ia visitar velhos amigos do passado. Consegui encontrar dois, os demais não mais moravam no bairro, haviam se casado e ido morar não se sabe onde. Com esses que localizei fizemos a maior festa, conversamos animadamente e relembramos as antigas farras. Contei tudo que estava se passando e eles só riram. A princípio decidimos ir até o cemitério e tentar descobrir quem era aquela falecida. A foto lá estava na lápide, já quase desgastada pelo tempo, do jeito como eu vi. Anotei direitinho o nome completo e as datas de nascimento e falecimento, a minha intenção era identificar a família e talvez conversar e saber algo sobre essa pessoa. Com ajuda dos meus amigos consegui localizar o endereço desejado e pasmem com o que fiquei sabendo. Maria de Lurdes, ou simplesmente Lurdinha, era uma moça que morava ali no bairro, em uma rua mais afastada da que eu morei, ela freqüentava a casa de um dos nossos conhecidos e que no momento não mora mais nessa rua. O que uma irmã dela me falou foi que ela sempre me espionava e que tinha desejo de namorar comigo, só que eu nunca fiquei sabendo e quem sabia certamente me omitiu esse fato. Eu não me recordo dessa pessoa, posso até ter visto ela, mas devido ao tempo, mais de vinte anos, fica difícil tentar lembrar a sua fisionomia. O fato é que essa jovem, na época com seus dezessete ou dezoito anos, foi acometida de uma doença que lhe atingiu os pulmões e ela não resistiu, indo a óbito. Eu nunca fiquei sabendo dessa história e só depois, contada pela sua Irmã que também não conhecia, é que veio ao meu conhecimento. Agora, com tudo esclarecido, nunca mais sonhei com Lurdinha.

Moacir Rodrigues
Enviado por Moacir Rodrigues em 18/06/2022
Reeditado em 18/06/2022
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