O COMEDOR DE VELA

Gosto de ouvir todo tipo de fala, de onde, as vezes, tiro algum proveito.

A vida sempre nos apronta uma surpresa.

Certa vez eu caminhava num parque até me sentir cansado e logo me sentei num banco para descansar. Pouco demorou quando ao meu lado senta-se um senhor que aparentava ter mais de oitenta anos de idade. Observei que ele falava sozinho, olhando fixamente para o horizonte, como se lá, tão distante, alguém o desse atenção. De nada eu entendia da sua fala. Sua voz parecia ser para dentro de si: uma espécie de lamúria. Fiquei inquieto e não satisfeito em vê-lo assim, falando só, puxei uma prosa:

– Moco, o senhor está falando comigo? Perguntei-lhe por perguntar.

– Não estou falando com você! Estou falando é com Jurema. Faz muito tempo que falo com ela, mas ela não dá atenção a Rufino.

Fiquei confuso e questionei assim:

– Mas …Seu Rufino não vejo ninguém aqui, senão eu e o senhor!

– Só meu coração é quem vê Jurema, môço! - Disse-me com muita tristeza na voz.

– Coração é terra que ninguém pisa! Né mesmo? – Falei para acrescentar a prosa. E ele prontamente respondeu:

– Pois é môço! A minha prosa do “coração” é muito comprida.

– Como assim? - Indaguei no momento em que o velho baixou a cabeça e, olhando para os seus pés, silenciou-se por um instante.

Nascido em um lugar muito distante e andarilho por opção - como assim ele me disse -, o velho Rufino deixou que eu observasse o seu grande e incorrigível cacoete coçando rispidamente o nariz com os dedos enquanto, olhava para o nada e vagarosamente narrava seu dilema sobre a Jurema, que, de certo modo, não sei se era verdadeira ou se ele delirava com o assunto. O certo é que ele dizia casos sem nexos que vinham da sua infância até aos seus maus vividos dias atuais. Disse que sempre andou inesperado daquela garrafa de vinho de Jurubeba Leão do Norte que a trazia em um saco de estopa e ingeria-o em goladas à todo instante como se o mesmo fosse algo cientificamente receitado, chegando a me dizer que aquela bebida era o sangue purificado da alma de Jurema. E foi entre um gole e outro que o velho me contou sobre um terrível episódio que viveu:

– Já fui vaqueiro dos brabo môço. Eu nunca deixei o patrão me dar duas orde. Eu dirrubava uma rês na primeira laçada. – deu mais uma golada do vinho, cuspiu no chão por entre as pernas, depois lambeu os beiços e continuou: – Certo dia, môço, arribei pru sertão arriba com uma boiada: umas vinte cabeças. Depois da andança sortei tudo num capinzá dum cumpade do meu patrão e a ele entreguei a boiada. Demorei quase duas sumanas com essa labuta. E foi ai qui me dei conta qui eu tava sozinho no mundo e logo dirigi os meus pensamento no grande amor qui eu tinha pur Jurema. Naquele instante era uma tristeza desesperada que eu tava sentindo, môço! E dela me bateu uma sordade do zinferno.

A seguir o velho deu uma pausa na conversa, olhou bem dentro dos meus olhos e prosseguiu:

– Moço, aquela formusura de mulé não saía de meus miolos (disse com uma risadinha marota). Aí môço, eu vi que minha ispinhela estava mermo arriada pro lado dela. Não era feitiço não môço, era coisa do coração mermo. Uma paixão da mulestra. Um sentimento da gota serena. Um amor do cabrunco. Quando a sordade estava me doendo de mais no peito, eu amuntei no lombo do meu cavalo, dei meia vorta apressada; assubiei pro meu cachorro zumbi e vim vuando como um passarim pra mode ver Jurema. Aí môço, começou a minha viuvez de sortêro com a mulé viva e tudo. Foi só eu dá as costa com a boiada e a infiliz se amigou com um fulaninho conhecido por lá com o nome de Nêgo Né. Um sujeitim inservive da peste; um cachorro vagabundo; um cabra ordinaro do zinferno. Meu coração deu um pulo pra riba que quase morri, môço!

Tudo por culpa do mardito do disocupado. Ô sujeitim imprestave que só a lepra. Viveu oito mês com Jurema. Mas, mermo assim, eu tinha muita dó dela pru mode qui ela passava uma fome do diabo - o velho falava irritado, gesticulando com as mãos e os pés -, pois o disgraçado nunca trabaiava. Só sabia caçar rolinha e preá pra mode viver. Cuma pode, né? – Me interrogou irado e continuou se desabafando: – Um belo dia, môço, o mardito do Nego Né foi caçar preá e uma cascavé caçou ele primeiro. (o velho deu uma boa gargalhada, deu outro gole da jurubeba; enxugou os beiços com a barra da camisa surrada, sorriu e desabafou): - aquele veneno era meu, e aquela cascavé era eu. O disgraçado ficou três dia e três noite suando e gritando de dor e de fome. Cuma ele não trabaiava, não tinha o que de cumê e nem remédio pra mode tumá, ficou morrendo de mingua, pidindo pra Jurema lhe dar o que de cumê. (deu outra cuspida longe dos pé). Ai, o disgraçado vendo que ia mermo morrer invenenado, começou a improrar socorro pra jurrema gritando assim:

– Jurema, ou Jurema! Me ajuda, mulé! Tô morrendo! - Ele gritava sem parar.

– Fala Nêgo. Que é qui tu qué qui eu faça, ôme? – Perguntou Jurema cheia de reiva do mardito, pru mode da fome que ela tombém sentia duê no estombo.

– Jurema, me dá um punhadim de farinha. Tô morrendo do veneno da cobra e da fome também.

Mas ela tombém cheia de reiva e de fome, lhe respondeu asslm:

– Prá que qui tu qué farinha Nêgo? Daqui a pouco tu vai é cumê vela.

– Não deu outra, môço! – continuou o velho Rufino dizendo: – quando o dia crariou, chegou umas pessoas e colocaro e disgracento numa rede e adispois interraro ele no meio do mato. De lá ele deve ter se ido prus quinto dos zinferno. Dispois eu fui morar com Jurema e antes dela morrer nois dois viveu junto mais de dizoito anos. Derda que ela se foi eu falo com ela todo dia mas ela não me responde; só sei é que ela me ouve. Va ver que é o mardito do Nego Né que tapa a boca dela pra mode ela não falar com eu.

José Pedreira da Cruz
Enviado por José Pedreira da Cruz em 14/06/2022
Reeditado em 19/06/2022
Código do texto: T7537841
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