O homem e o lobo

Os tempos eram de praga e as lágrimas não cessavam de cair. Os ventos traziam apenas maus agouros enquanto pequenos corpos pútridos eram devorados pelo tempo e os mais sábios estouravam os próprios miolos deixando como herança dívidas e uma grande mancha vermelha nas paredes de suas salas de estar. Os olhares eram viciados e as mãos estendidas eram carcomidas, o pensamento se perdia em pastagens sem fim e o relógio da grande torre havia parado dois anos atrás. Preces mal formuladas vagavam por surdos ouvidos de divindades que existiam apenas em livros e vãs esperanças enquanto a velha depressão, a velha frustração, caía sobre os pobres aldeões como uma interminável chuva de verão. O céu estrelado transmitia loucura a um lugar em que apenas ela poderia trazer um sorriso para algum rosto desesperado e molhado de suor.

Próximo a um lago vagava um velho lobo negro com olhos amarelados de criatura antiga e caminhar lento sem preocupação com tempo ou a labuta rotineira de formigas e homens. Seu pensamento era antigo e sua alma parecia sorrir. Sorria como se visse um rato encontrando a saída de um labirinto apenas para entrar em um novo maior ainda. Enquanto sentia o cheio da noite e via as luzes da cidade deitou-se calmamente sobre a verde grama, que rapidamente se tornou amarela e logo depois totalmente escura, totalmente morta. Sua alma ainda sorria, aquele era o seu momento e uma lição seria ensinada, uma lição sobre grandeza, uma lição sobre desespero. Uma lição sobre como princípios são tão frágeis quanto papel e sobre como a menor ameaça pode rasgá-los sem qualquer esforço. O velho lobo sorria, pois os tempos eram de praga e as lágrimas não cessavam de cair.

***

O relógio continuava parado quando um homem de longos cabelos castanhos pisou na terra do pequeno vilarejo imerso no ar quente do meio-dia. O homem possuía um olhar duro e parecia trazer atrás de si uma grande tormenta, como se uma maldição pairasse sobre seu ser e o seguisse por onde quer que fosse. Grandes nuvens vermelhas de onde se chovia insetos e outras tantas coisas desprezíveis. Trazia uma grande mochila consigo e suas vestimentas declaravam abertamente sua riqueza para quem quisesse ver. Todos se viraram para olhar, os adultos esquecendo-se de suas tarefas e as crianças de suas brincadeiras. Velho Tom, o homem mais velho do vilarejo, lembrou-se de antigas histórias sobre cavaleiros e reis que contou para sua filha antes de ela ser violentada e partida em pedaços por bandidos trazidos direto do próprio inferno. Suas mãos começaram a tremer, então agarrou novamente a vassoura e recomeçou a varrer vagarosamente enquanto seus olhos se embaçavam, confirmando seu temor diante da impossibilidade de esquecer ou continuar em frente.

Enquanto caminhava o homem fixava seus selvagens olhos azuis por todas as pessoas e nos poucos cantos escuros que a paisagem oferecia. Todos desviavam o olhar e ninguém tinha idéia da terrível tarefa que ele pretendia concluir naqueles campos, menos ainda de quanto sangue e lágrimas ainda teriam que ser derramados. Ele vinha no encalço de uma sombra que deixava rastros vermelhos por onde quer que passasse. Não havia distância segura, não havia certeza real. Ele era um caçador e quando travava combate não havia opção senão a morte.

***

Era o terceiro copo que Patrick limpava atrás de seu velho balcão por não ter outra coisa para fazer. Seu bar estava vazio exceto por William que mantinha a cabeça abaixada e o rosto oculto entre seus braços, que era sua posição típica depois de 30 minutos bebendo uísque. O silêncio era perturbador, pois nem os sons usuais da cidade podiam mais ser ouvidos. A situação era a pior que o barman vira desde que saíra da barriga de sua querida mãe, há quarenta anos. As pessoas pareciam simplesmente abandonar a vida e definhar lentamente, como se alguma doença corroesse suas mentes e suas vontades de viver. Patrick poderia jurar que vira há menos de um dia os olhos de um homem se apagar e sua expressão se tornar indistinta, até que ele se levantou e saiu do bar. No mesmo dia a notícia de seu suicídio se espalhou como erva daninha por entre as ruas do vilarejo. O choque foi grande, mas em algum lugar de sua mente Patrick sabia que isso aconteceria, pois viu o momento em que a sombra acariciou e levou a vida do pobre homem, tornando luz em escuridão e a alma em vazio.

De repente um frio antinatural se abateu sobre o bar e Patrick teve um calafrio como nunca tivera antes. Havia algo errado ali.

- Hei, William! Está sentindo isso?

O homem bêbado nada falou, apenas se moveu um pouco e fez um som estranho, como se resmungasse em alguma língua esquecida. Logo depois tremeu quase imperceptivelmente, como se sentisse o mesmo calafrio, e ficou imóvel novamente. Patrick largou o copo e tencionou a sair de trás do balcão, mas não havia para onde ir nem o que fazer, por isso ficou lá parado com uma incontrolável vontade de se mexer, como se estivesse num lugar prestes a ser atingido por um raio. Olhou a portinhola por onde entravam poeira e uma fraca luz do sol e decidiu ir até lá para ver como estavam as coisas do lado de fora. Assim que deu o segundo passo a portinhola se abriu e um homem entrou pisando ruidosamente com suas pesadas botas, fazendo o chão e o coração de Patrick tremer. Era um forasteiro e o barman poderia jurar que quando o homem adentrou o lugar ele sentiu as luzes escurecerem.

O homem era muito alto e de porte imponente, com olhos azuis frios como a morte a diminuir qualquer pobre ser que ousasse retribuir seu olhar. Aproximou-se do balcão, largou sua grande mochila e sentou em um dos bancos arredondados.

- O que vai ser, chefe? – disse Patrick, começando a manchar suas roupas de suor.

- Água, por favor. – respondeu o homem de longos cabelos castanhos sem olhar para qualquer lugar em particular.

Patrick ficou tão surpreso com o pedido quanto com a voz do homem, que era fraca e dissonante como se fosse necessário um grande esforço para fazê-la soar. Patrick virou-se para buscar a água e de costas, enquanto enchia o copo, teve a persistente sensação de que a qualquer momento uma espada trespassaria seu coração. Quando colocou o copo no balcão mal conseguia controlar o tremor em sua mão.

- E então, da onde vem?

Patrick era um conversador nato e tinha orgulho disso, mas assim que as palavras saíram de sua boca ele se arrependeu de tê-la aberto. O homem simplesmente levantou os olhos por alguns segundos e os baixou novamente, o suficiente para o estômago de Patrick se revirar e um confuso pensamento como “Seus olhos são infinitos!” cruzar rapidamente sua mente. Quando pareceu que não haveria resposta alguma o homem disse:

- Leste.

- Oh! Mas isso é ó-ótimo! Já ouvi falar de várias cidades maravilhosas por lá, inclusive a própria capital! E quais novidades podemos ouvir por aqueles lados?

O homem encarou o barman novamente.

- Praga.

Patrick se calou e dessa vez decidiu que assim ficaria. Andou até as prateleiras de garrafas e fingiu que as arrumava, simplesmente trocando-as de lugar. Rezava silenciosamente para que algum cliente normal entrasse ou até mesmo que William acordasse de sua embriaguez para não ter que ficar sozinho com aquele homem assustador.

Depois de alguns minutos, quando praticamente todas as garrafas já haviam sido movidas, o homem disse enquanto tirava algum objeto de sua mochila:

- Encha esses cantis, por favor.

Patrick se virou com um sobressalto.

- S-sim, senhor.

Enquanto enchia os surrados cantis Patrick observou o homem se movimentar. Tirou de sua mochila um mapa e um pedaço de nanquim, com o qual começou a riscar o papel. Começou de maneira lenta e ritmada, mas depois acelerou e arregalou levemente os olhos. Fez menção de se levantar e sentou-se novamente. Retirou outro mapa e observou, comparando com o que havia acabado de riscar. Ficou assim por uns dois minutos e então os guardou novamente. Esperou até que Patrick voltasse e perguntou:

- Quanto lhe devo?

- É por conta da casa. – disse Patrick mostrando o melhor sorriso que a situação permitia.

O homem o encarou por alguns segundos com seus olhos penetrantes e por fim colocou a mão em uma pequena bolsa em sua cintura. Tirou de lá duas moedas de ouro extremamente brilhantes e colocou em cima do balcão. Não havia qualquer desenho em suas superfícies.

- Mas, senhor, eu...

- Como pagamento para o barqueiro.

Patrick arregalou os olhos e olhou para William do outro lado do bar.

- Eu não... não entendo...

O homem já saía do estabelecimento quando Patrick chegou à mesa de William. Ficou apenas olhando por alguns segundos para depois esticar o braço e dar um leve toque no bêbado. Nenhum movimento. Levou então a mão ao pescoço do homem para sentir sua pulsação, mas nada havia lá senão uma pele que já começava a esfriar.

***

Os tempos eram de fartura e a vida não parava de brotar sob os pés de um humilde fazendeiro que via toda sua realização brilhar esplendorosamente verde por todas as direções. Realização cultivada com lágrimas e suor de uma vida por muitos anos sofrida e desgastante, uma rotina cinzenta na qual não havia esperança além do horizonte. Era finalmente um dia quente, brilhante e feliz. As nuvens já começavam a se agrupar e não demoraria muito mais para que a terra ficasse molhada novamente, trazendo prosperidade aos negócios e moedas ao bolso. O nome do homem agachado sobre a grama era Henry, e ele o primeiro chefe de sua família a quatro gerações a alcançar alguma meta naquelas pastagens.

- Hei, chefe! Tem alguma coisa estranha por aqui!

Manny, o único capataz da fazenda, gritava do outro lado da plantação. Henry olhou para o homem gordo que considerava como um grande amigo e levantou um pouco seu chapéu com o dedão. Deu um sorriso e se ergueu, andando vagarosamente até o amigo.

- O que foi, Manny?

- Não sei ao certo, mas sei que é estranho por demais.

Fernando Domith
Enviado por Fernando Domith em 08/06/2022
Código do texto: T7533111
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