No Embalo do Louvor
Saí para ver a lua cheia; gosto de admirar a beleza imponente que ela esbanja em meio ao céu noturno e naquela noite em específico, ela estava com toda sua irreverência e luz. Que sensação sinistra! Por um instante fechei os olhos para ouvir o exaurido silêncio que brota do lugar onde moro.
As casas da rua estão totalmente vazias, os vizinhos fugiram, pois não suportaram conviver ao lado do mal. Às vezes, tudo está calmo, mas do nada Nazaré, a minha vizinha ao lado, age de uma maneira indescritível, “é o próprio demônio”, disseram aqueles que fugiram, o medo os fizeram deixar tudo para trás. Na rua Misericórdia restou apenas Nazaré e eu, o silêncio é completo, até os carros evitam passar por aqui. Não fugi e não fujo! Louca? Talvez. O fato é que me acostumei àquela sensação de pânico, do medo do desconhecido que Nazaré emana em mim. A criança pavorosa cresceu e se tornou uma jovem com uma aura misteriosa, seus olhos não são normais, nunca foram, muito menos a sua expressão é de uma adolescente cheia de incertezas descobrindo a vida.
Algo obscuro ronda a casa como se o próprio mal habitasse nos umbrais das portas. O terror assola a casa ao lado, porém não permito que adentre a minha, por mais lunático que possa parecer, ouço com frequência os acontecimentos sobrenaturais que rodeiam a casa. É terrível acordar no meio da noite e ouvir os sons infernais do quarto de Nazaré, é indescritível o cheiro de enxofre que invade o meu quarto, insano! É totalmente insano tudo o que já presenciei, ouvi e senti, ninguém em sã consciência suportaria tudo o que eu suporto, acho que não sou mais eu mesma, tornei-me uma mulher que não tem medo do sobrenatural, uma mulher que se fechou para o mundo das pessoas normais.
Contrariando as leis de sua casa, há alguns dias Nazaré tem agido diferente. Algo mudou na normalidade sobrenatural que é a vida dela. As noites têm sido tranquilas, não acordei ofegante como se o ar estivesse rarefeito em meu quarto, não a ouvi falar mais as variadas línguas e dialetos impossíveis de se imaginar para alguém que não consegue ler e escrever. Isso tem me inquietado, confesso. É como se um mal vindouro estivesse à espreita a ponto de culminar em algo terrivelmente novo.
Contemplando a luz da lua, ouvi o entoar de um louvor. Era ela! Nazaré cantava um cântico novo e a letra da canção falava do amor de Deus. Aquelas sílabas musicalizadas penetraram em meus ouvidos de maneira clara e dolorosa e lá se infiltraram como um Eigengrau, sem tom ou cor certa. Ah! aquilo me inquietou de uma forma tão estranha e complexa que o sobrenatural já vivenciado por mim se tornou algo banal. Meu corpo se arrepiou por completo como se uma jorrada de vento abaixo de zero me tomasse em seus braços.
Minhas pernas tremeram sem controle e a voz imponente penetrou em meus ouvidos me deixando sem ar. Logo eu que nunca tive medo, me senti uma criança ao ouvir o louvor da boca de quem nunca imaginei. Seria uma nova possessão? Será que Nazaré havia entregado sua alma às Mãos Onipotentes do Altíssimo? Várias hipóteses rondavam minha mente. Sem controle do corpo cai, meu joelho ardeu com o impacto e vi o escarlate surgir no mesmo instante… meu sangue logo se tornou escuro e isso me perturbou, pois o embalar da canção me ludibriou, deixou-me tonta. Senti como se ouvisse o "canto da sereia" tamanho poder de atração exercido sobre mim, eu estava quase sem resistência. Entretanto, contrariando todas as leis, levantei tateando e adentrei em minha casa.
Como era possível um louvor na boca daquela que nunca chamou por Deus? Entrei rapidamente, com o intuito de não ouvir tamanho sacrilégio. Mas, a voz sinistra da própria Nazaré entrou na minha casa, fixou-se em meus tímpanos, causando em mim uma repugnância jamais sentida. Nunca a ouvi cantar música qualquer que falasse de Deus. No entonar da canção, meu corpo perdeu completamente as forças.
Deitei em posição fetal e permaneci por muito tempo. A canção terminou depois da repetição do refrão, mas logo em seguida, iniciou novamente como um looping sem fim. Eu estava tão impaciente… incomodada e entorpecida pela melodia que senti uma conjuração tomar conta de mim. Sem seguir meus comandos, minhas pernas colocaram meu corpo de pé; meus pés moveram-se até a cozinha; minhas mãos seguraram uma faca de forma precisa e a posicionaram no meu próprio pescoço.
Eu era uma marionete, um brinquedo nas mãos de uma criança. Eu não tinha controle nem dos próprios pensamentos, pois eles estavam alterados. A lâmina gelada da faca tocou meu pescoço e eu presenciei o fim vindouro como uma jorrada de vento quente abrasando todo o meu ser. O entoar parou! Abruptamente, soltei a faca no chão e respirei fundo. Nazaré riu um riso macabro com vários timbres. Suspirei aliviada.. Ela estava "normal''.