Fluente como um nativo
Encontramos Gerardo Capmany sentado à uma mesa próxima à cozinha do bar, de onde podia observar quem entrava no estabelecimento.
- E também me dá uma saída pelos fundos, em caso de necessidade - declarou, muito sério.
Não julgamos exageradas as precauções de Capmany, pois ele já havia sobrevivido a situações que nós, acostumados ao conforto da civilização, mal podíamos conceber.
- Eu poderia baixar a guarda quando estou de licença, - admitiu, enquanto fazia um gesto para que o barman lhe servisse outra tequila - mas é difícil abandonar velhos hábitos.
- Principalmente se esses hábitos lhe salvaram a vida inúmeras vezes - observou meu colega, Hugo Indiano, com simpatia.
- Sim - Capmany fez um gesto de cabeça. - O que bebem?
- Duas águas sem gás - respondeu Indiano. - Estamos de serviço.
O barman serviu-nos e voltou a prestar atenção à TV, na parede sobre o balcão.
- Mas vocês, do Instituto, não costumam beber muito, mesmo fora de serviço - avaliou Capmany com expressão arguta.
- Exceto se for estritamente necessário para o trabalho de pesquisa - observei.
- Que seja - Capmany virou a tequila em uma só golada. - Mas lá, para onde querem ir, homens que não bebem atraem suspeitas. Até porque, a qualidade da água potável é sofrível, para dizer o mínimo. Todo mundo bebe cerveja, até mulheres e crianças.
- Acho que posso me acostumar a beber cerveja de má qualidade - ponderei.
- Você acaba se acostumando - ponderou Capmany.
- O que nos trás ao ponto dessa nossa reunião preliminar - atalhou Indiano. - Quanto tempo você morou entre os unug?
Capmany exibiu um sorriso triste.
- Talvez tempo demais, devo admitir. Mas, falando objetivamente, o suficiente para me comunicar fluentemente com os locais.
- Isso é o que importa - replicou Indiano.
- Não vamos voltar exatamente para o período em que viveu entre eles, - ponderei - mas cerca de 50-100 anos depois. Vê algum problema nisso?
Capmany deu de ombros.
- Era uma civilização agrária, a língua evoluía muito lentamente; talvez eu acabe usando alguns termos arcaicos, mas isso não será um empecilho ao trabalho de vocês.
- Assim esperamos - redarguiu Indiano. - Não sabe o quanto é difícil conseguir uma autorização para estudar in loco essas culturas da antiguidade remota.
- O que sei é que o meu serviço será bem pago - afirmou Capmany com convicção. - Afinal, não sou somente o único intérprete de uma língua morta há 5.000 anos, mas o guia de vocês para a sociedade deles.
E fazendo um gesto para o barman servir outra tequila:
- A vida naquela época podia não valer muito, mas podem ter certeza de que as pessoas a viviam com muito mais intensidade.
Daí talvez, ponderei, ao voltar para a nossa época Capmany quisesse resgatar a experiência com doses de destilado...
- [14-04-2022]