Ardor ou ardósia

Se Leticia me perguntasse o que eu mais gostava nela, provavelmente eu diria que eram as suas mãos - ou, mais especificamente suas unhas, aparadas, limpas e rosadas. Foram estas unhas, nas pontas de dedos curtos, que haviam atraído minha atenção para ela pela primeira vez. Não a cabeleira cacheada. Não a boca carnuda.

Agora, estes dedos desenhavam arabescos preguiçosos através do meu cabelo, no meu couro cabeludo, e eu estava com os olhos semicerrados, devaneando.

- Você está aí? - Indagou ela, inclinando-se sobre mim e parando de fazer cafuné.

- Ainda estou aqui - abri os olhos.

- E no que estava pensando? - Inquiriu.

- Além de você? - Repliquei em tom brincalhão.

- Eu ocupo tanto espaço assim, nos seus pensamentos? - Leticia fingiu surpresa.

- Ocupa - admiti. - Mas há outra coisa em que andei pensando, enquanto estava aqui deitada, com a cabeça no seu colo: porque as pessoas que são convidadas para as festas na Casa da Lagoa nunca trazem fotos para mostrar o que acontece por lá? Elas têm que assinar um termo de confidencialidade? Os celulares são recolhidos na entrada?

Leticia deu uma risadinha.

- Não, ninguém proíbe que entrem lá com celulares. E o problema também não é que lá não tenha sinal...

- Se fosse isso, poderiam tirar as fotos e postar na internet quando saíssem - ponderei.

- A questão é que, dentro da Casa da Lagoa, celulares deixam de ser celulares - prosseguiu Leticia. - Eles viram pedaços de ardósia.

- Ardósia? - Franzi a testa.

- É um tipo de pedra, preta. Sabe no quê usavam ardósia, antigamente?

- Não faço ideia - admiti.

- Para fazer quadros negros, onde as pessoas escreviam nas salas de aula.

Abri a boca.

- Oh... continua sendo um meio de comunicação, então - constatei.

- Ah, mas muito mais discreto. E sem nenhuma tecnologia - concluiu Leticia, voltando a movimentar os dedos.

- [16-03-2022]