Flor da paixão

A noite parecia ter durado muito mais do que seria razoável imaginar, pensou Williamina Camburn ao chegar ao último caramanchão do jardim interno, concluindo seu périplo festivo. A sensação de que o tempo no interior expandido da Casa da Lagoa passava de modo diferente do mundo lá fora, não se devia ao entorpecimento dos sentidos pela bebida oferecida copiosamente pelos criados de máscara branca: seguindo as instruções de sua colega de quarto, Margeret Northwood, Williamina bebera e comera apenas o que havia levado consigo. E tudo o que levara consigo, estava repleto de sigilos e encantamentos de proteção.

Portanto, ao instalar-se sob o caramanchão coberto por um maracujazeiro florido, enquanto os pares de dançarinos giravam ao seu redor em coreografias selvagens, constatou que o negror do céu estrelado sobre sua cabeça começava agora a assumir o tom cinzento que precede a aurora. O baile, contudo, não parecia estar perto de acabar.

- Está se divertindo? - Indagou Eunice Littlefield, vindo ter com ela depois de uma longa sequência de danças onde trocara de parceiro inúmeras vezes.

- Parece que tudo está girando ao meu redor; e não estou falando do fato de ter me colocado como Rainha da Noite - admitiu Williamina.

Eunice abriu um sorriso malicioso.

- Eu não a vi bebendo uma gota sequer de álcool.

Williamina ergueu os sobrolhos.

- Como pôde prestar atenção no que eu fazia, girando como um pião pelo salão?

Eunice deu de ombros.

- Quando você tem a minha idade, aprende a fazer muitas coisas ao mesmo tempo...

- Não me diga qual é, por favor, para não me envergonhar - atalhou Williamina. - Se eu dançasse cinco minutos que fosse com um desses cavalheiros, provavelmente voltaria para essa cadeira esbaforida.

- Eles são fortes, mas também se cansam - ponderou Eunice. - Contudo, se não continuarem dançando até o raiar do dia, não poderão provar o seu valor.

Williamina olhou de soslaio para a anfitriã.

- Isso aqui é realmente um baile ou uma prova de resistência?

- Pode-se dizer que é um pouco dos dois - Eunice apoiou um cotovelo no espaldar do cadeirão de Williamina. - As garotas vêm aqui pela diversão, e os rapazes... bem, os rapazes querem algo mais.

- E o que você quer, Eunice? - Williamina arrependeu-se quase que imediatamente da pergunta que fizera, mas já era tarde para reformular a sentença.

A anfitriã, cujo perfume continuava inalterado mesmo após horas de atividade física, inclinou-se sobre ela e sussurrou em seu ouvido:

- Você, Darganfyddiad. Você.

A jovem engoliu em seco. Será que a Residente pretendia mantê-la em cativeiro, como um bicho de estimação? Por tudo o que já lera, essa hipótese era perfeitamente plausível.

- Mas... eu estou aqui, não estou? E posso vir sempre que você quiser - gaguejou, no seu nervosismo. Por mais interessante que a vida do Outro Lado pudesse ser, ela não estava pronta para abrir mão de se tornar uma bibliotecária militante; e essa era uma atividade que estava totalmente fora de questão ali.

- Ora, ora, ora... acabei de ouvir uma promessa? - Sussurrou novamente Eunice, parecendo divertir-se com a situação.

- Desde que, claro, eu possa voltar para casa, sã e salva - corrigiu-se rapidamente Williamina, virando-se para encarar a anfitriã.

Eunice aprumou o corpo e pôs as mãos nas cadeiras, antes de indagar gelidamente:

- E como você achou que voltaria, Darganfyddiad?

- Da mesma forma que cheguei aqui - murmurou a jovem.

Eunice fez um gesto de cabeça.

- E assim será. Por maior que seja o meu desejo de mantê-la aqui, à minha disposição, creio que por ora posso me contentar com a sua oferta voluntária de vir ter comigo... sempre que eu assim o desejar - e deu uma piscadela, como que para tranquilizá-la.

- Aprecio a sua magnanimidade - disse diplomaticamente Williamina, evitando agradecer diretamente e se colocar numa situação ainda mais delicada do que já estava.

- Não agradeça a mim, mas àquela que lhe deu total proteção para que resistisse a todos os encantos do Outro Lado - comentou Eunice, voltando a assumir uma pose mais relaxada.

Williamina agradeceu mentalmente à colega Margeret, mas o que Eunice disse em seguida a arrepiou de cima a baixo:

- Quando você a beijou, fixou sua âncora no mundo dos mortais.

Foi então que ela soube que Eunice estava se referindo à Alison, não à Margeret.

- [14-12-2021]