O fim do murídeo

Em um colóquio científico realizado numa profunda região da metrópole, um excêntrico sábio discursa:

— No imaginário comum estão bem definidos os parâmetros daquilo que constitui a realidade desse mundo. Por exemplo, sabe-se que um cachorro não pode falar ou que o sol nascerá de novo a cada manhã. Investigar os motivos das coisas serem o que são, seguindo o fio da causalidade que se estende ad infinitum nos desdobramentos da natureza, cabe aos cientistas. Todavia, se para o senso comum, as representações sociais e culturais fornecem o conteúdo simbólico tranquilizador, como um bote salva-vidas em um naufrágio; para o espírito perquiridor, a busca pela verdade força ao perigo da incerteza... Mas traz também o vislumbre daquilo que é verdadeiro, e nada é mais poderoso do que a verdade.

A plateia oscilava entre a surpresa e a abstração, a maioria dos ouvintes eram doutos em alguma área do conhecimento. Estavam ali porque aquele que falava trazia ideias novas, que ameaçavam solapar toda a base do conhecimento construído até então, despertando fascínio em alguns, medo e repugnância em outros.

— Nós não devemos de maneira alguma — continuou o orador. — renegar a verdade porque ela nos parece desagradável. Lembro-me do princípio do filósofo P...: "Mais vale errar verdadeiramente errando do que acertar verdadeiramente no erro".

Nesse momento, houve um grande frisson na plateia, alguns senhores pigarrearam.

— A realidade como a conhecemos, que coloca a nossa espécie como privilegiada em relação aos outros animais — prosseguiu o cientista. —, provou-se infundada após um série de testes em laboratório que fizemos com humanos. Agora começamos a compreender que os humanos podem ter uma estrutura cerebral muito complexa, e os ratos são mais uma espécie na escala da evolução. Até mesmo os gatos, que imaginávamos animais tão inferiores, mostraram-se incrivelmente inteligentes em outros testes de laboratório.

O orador prosseguiu mostrando todo o seu conhecimento do assunto por mais uma hora, até que abriu-se espaço para as perguntas dos especialistas na plateia. Na primeira fileira, um rato idoso e que parecia roer uma espécie de podolico, foi quem iniciou o debate:

— O sr. afirma — disse, dirigindo-se ao orador. — que a repugnância que sentimos pelos humanos, devido ao seu modo de vida nem sempre tão higiênico, ocorre de modo semelhante aquilo que os humanos sentem quando nos veem.

Algumas senhoras na plateia fizeram cara de nojo.

— Desse modo, eu pergunto — prosseguiu o rato na plateia, que era um especialista na psicobiologia dos ratos. — se o fato de os humanos frequentemente nos matarem, sem que nós os façamos mal algum, não revela que eles estão mais próximos da animalidade e longe da nossa civilidade, uma vez que nós raramente os matamos apesar da ojeriza que sentimos por eles?

O orador pareceu refletir por um momento, e respondeu a pergunta do rato da plateia dessa forma:

— Se entendermos civilidade como respeito às normas interiorizadas que permitem a boa convivência e a harmonia na sociedade, os humanos estão entre os menos civilizados do mundo animal. Contudo, se levarmos em conta a capacidade de raciocínio, e a consequentemente utilização da natureza por meio do desenvolvimento de tecnologias, os humanos podem até superar a nossa capacidade de ratos.

Os sons na plateia denotaram estupefação. Uma elegante senhora com grandes dentes roedores, que era especialista na genética murídea, fez a próxima pergunta:

— No seu livro, o sr. diz, não sem um certo senso de humor, que para os humanos a ideia de que os ratos possam ser mais inteligentes do que eles é tão absurda que, para aqueles os quais defenderam ideias semelhantes, os homens criaram o manicômio. Se os humanos são tão inteligentes, por que vivem nessa total irrealidade?

— Esta é uma questão sobre a qual eu venho meditando nos últimos anos... Há evidências de que para os humanos existe uma realidade paralela, no qual eles são os únicos animais racionais da natureza. Penso que, assim como eles, nós ratos talvez tenhamos como base uma ilusão semelhante, sobre a qual nós constituímos o sentido de tudo o que existe no Universo.

Houve ainda uma série de questionamentos do público, e o colóquio chegou ao fim.

Terminado o evento, todos começaram a se retirar para os seus lares. Então, o sábio pesquisador partiu sozinho na noite escura. Caminhou, filosofando, por entre calçadas sobre as quais alguns humanos moradores de ruas dormiam. Foi quando uma mulher, que andava por ali, o viu:

— Um rato!! — ela gritou.

O cientista murídeo pensou em correr e se esconder em alguma fenda, era o que os ratos faziam nessas ocasiões. Mas o sábio estava tão abstraído e pensava consigo mesmo: "Será que essa mulher não suspeita que além da sua realidade existe uma outra que faria cair por terra todas as suas certezas? Ou então a perspectiva humana seria a correta e tudo não passa de devaneios? Essas são graves questões."

Ao grito da mulher, um homem se aproximou e, vendo que o rato não se mexia, bateu-lhe com um pedaço de madeira três vezes. O rato, infelizmente, não resistiu aos golpes e, em questão de minutos, foi a óbito.