A Cidade Persistente
Ainda estava escuro quando Kaleb começou a sacudir seus companheiros de viagem, que dormiam em redes, num dos dormitórios da pousada.
- Vamos, é hora de botar o pé na estrada! - Conclamou, acendendo lamparinas de óleo mineral para iluminar o ambiente.
- E agora existe uma estrada? - Questionou um dos homens de Raphel. - Até ontem, só se via mato!
- Se tudo estiver correto, mato é o que se verá - redarguiu Kaleb.
- Não vamos nem comer antes de sair? - Inquiriu Raphel, espreguiçando-se sentado na rede.
- Vamos ter tempo para isso depois que sairmos dos muros da cidade - replicou Kaleb, erguendo os três dedos centrais da mão direita. - Regra número três.
Conformados, todos se vestiram e foram para a estrebaria, preparar os animais para a jornada do dia. Finalmente, quando o céu começava a empalidecer no leste, a caravana deixou a pousada e por ruas agora desertas, pôs-se a caminho da entrada na muralha, por onde haviam ingressado na noite anterior. Os portões estavam fechados, mas dois soldados com alfanges e armaduras douradas, os abriram para que passassem.
- Pois agora há uma estrada calçada, - constatou Raphel, que cavalgava ao lado de Kaleb - que certamente não estava aí ontem!
- Certamente que não deve ter reparado nisso, na escuridão - minimizou o guia. - Mas não iremos seguir por ela, vamos rodear a muralha e retornar ao ponto onde estavam ontem, quando os chamei.
E assim, a tropa contornou a muralha, de tal modo que ao chegarem ao ponto onde haviam parado na noite anterior, o sol nascente banhou seus rostos e os cegou momentaneamente. Quando olharam em direção à cidade da qual haviam saído, ela já não estava mais visível; junto deles, agora erguiam-se apenas as ruínas de um castelo ou fortificação, com colunas quebradas erguendo-se qual dedos para o céu rosado.
- Passamos a noite numa miragem? - Questionou Raphel, atônito.
- Sayirsheri é um lugar bastante real, - atalhou Kaleb - e nós precisamos seguir viagem para o vau do Yavashakish.
Ninguém ousou contestar o guia. A tropa seguiu seu curso, através do mar de urzes de Düzarazi.
* * *
O sol estava a meio caminho do zênite quando o guia fez sinal de alto. Mais à frente, os restos de uma antiga fortificação emergiam dentre a urze.
- Estão reconhecendo aquelas ruínas? - Questionou ele.
Os homens colocaram as mãos em pala sobre os olhos.
- Parece com aquela na entrada de Sayirsheri - comentou um deles.
- Não parece; é a mesma - afirmou Kaleb.
E voltando-se para os companheiros de viagem, muito sério:
- Muito bem; qual de vocês quebrou a regra número um?
Os homens entreolharam-se.
- Nenhum de nós - disse um deles, muito sério.
Kaleb voltou-se então para Raphel.
- O que nos deixa você como possível causa do problema - afirmou, braços cruzados.
Raphel baixou a cabeça e enfiou a mão num dos bolsos. Dali retirou um pires de bronze dourado, do chá que havia sido servido após o jantar na noite anterior.
- Era apenas uma lembrancinha - justificou-se, ao estender o objeto para o guia.
- Nada se leva de Sayirsheri - recordou o guia, dedo indicador erguido. - Apenas a comida e a bebida que couber em nossos estômagos. Regra número um.
E esporeando o cavalo, pires na mão, cavalgou sozinho na direção das ruínas. Os homens o viram contornar as rochas cinzentas, e quando ele ressurgiu no outro lado, suas mãos estavam vazias.
- Perdemos tempo com essa história - disse ao voltar. - Mais alguém resolveu levar uma recordação para casa?
Ninguém mais se acusou e Kaleb decidiu que podiam seguir viagem. Deixaram as ruínas para trás e não voltaram a vê-las novamente, para alívio geral.
- [Continua]
- [04-10-2021]