A menina do vestido amarelo

PERGUNTA 1: E como ser feliz?

Toca o sinal para o fim do intervalo. Os alunos do nono ano entram aos empurrões na sala. Estão mais agitados que de costume. Bolinhas de papel, gritos, risadas... Foram necessários alguns berros da Ana Lúcia, professora de Geografia, para que se sentassem. Durante quase todo tempo, ela fez da garganta sua aliada.

No final da aula, depois de se tornar a deusa do trovão e estrondar um “SILÊNCIOOOO!” com força suficiente para petrificar os alunos, Ana Lúcia inicia o sermão. Fala, no ritmo de sua irritação, sobre estudo, respeito, interesse, profissão, projeto de vida e outros temas desgastados e, quase todos os dias, reciclados por ela.

Após a ventania de palavras, a professora pausa repentinamente... Os alunos se espantam. Ela já não os vê... Está tudo escuro. A vertigem a faz se segurar na lousa. Em meio à tontura, percebe, de relance, uma menina, de vestido amarelo, no pátio da escola. Fica pálida.

Parcialmente recuperada, Ana Lúcia se senta para fazer a chamada. Na pasta em que guarda os diários, encontra um papel colorido e perfumado. Abre-o e lê: “E como ser feliz?”. A letra é de criança.

Confusa e atentamente observada pelos alunos, Ana Lúcia guarda o bilhete e inicia a chamada. Verifica que João Paulo faltou à aula outra vez.

PERGUNTA 2: Que marca você quer deixar na vida?

Os olhos de João Paulo estão vermelhos, numa mistura de lágrimas e raiva. Tem 15 anos e se julga homem suficiente para enfrentar o padrasto, mas ainda sente medo. “É minha culpa. Preciso de coragem pra defender minha mãe, mas sou covarde” – pensa.

O peso da culpa esmaga sua vontade de viver. Não quer mais ir pra escola e só pensa em por um fim em tudo. As marcas nos braços mostram que algumas tentativas já foram feitas.

Olha pela janela e vê, no quintal, uma menina com um vestido amarelo. Apesar do medo, abre a porta e procura a criança. Não a encontra. Entra e tranca a porta. A respiração está rápida. Vê sobre a mesa um papel colorido. “O que é isso? Será que minha mãe deixou um bilhete?” – tenta adivinhar. O papel é bonito e cheiroso. Abre-o e lê: “Que marca você quer deixar na vida?”

- Marca? Como assim... marca? – pergunta a si mesmo.

Está ofegante, confuso. Senta-se. Busca se acalmar. Lembra-se das marcas em seu corpo. Depois de alguns minutos, mais calmo, decide enviar uma mensagem a Carlinhos para contar o que aconteceu.

PERGUNTA 3: Qual é a história mais bonita que você já escreveu?

Carlinhos olha, com curiosidade, para o homem de cabelos grisalhos, sentado há mais de hora na mesa três. Ele beberica, vagarosamente, um copo de cerveja, que já deve estar quente.

- Garoto! – chama o homem, de repente.

- Pois não?

O homem de rosto surrado se apresenta. Chama-se Gregório. Bebe mais um pouco da cerveja quente e pergunta:

- Garoto, qual sua idade? Você estuda?

O menino conta que tem 14 anos, que parou de estudar para trabalhar e ajudar em casa, mas que vai retomar os estudos assim que a situação melhorar.

- Preste atenção nisso: Pra enfrentar a vida, você precisa se armar. E sabe qual é a melhor arma? É o conhecimento. Então, garoto, não pare de estudar.

Carlinhos, intrigado com aquele homem e com o que ele disse, resolve conhecê-lo melhor:

- O senhor trabalha com quê?

Gregório toma o resto da cerveja, seca a boca com um guardanapo, olha fixamente para o menino e resume, com revolta e desilusão, sua vida profissional. O mesmo homem que, minutos atrás, estimulava o menino a estudar, parecia, agora, jogar a toalha:

- Sou um jornalista qualquer... um ninguém desempregado. Jornal impresso, garoto, sabe como é... Ninguém vai sobreviver nessa droga não. Tô há quase um ano sem emprego. Gastei o dinheiro da rescisão num negócio que não deu certo, um jornalzinho de bairro pela internet. Sobrevivo de freela. Enfim, sou um grande nada, bebendo cerveja quente numa segunda-feira e conversando com um garoto que abandonou a escola pra ajudar a pagar as contas da casa. Grande bosta de país. Concorda?

Carlinhos fica em silêncio. Não faz ideia do que responder.

Mecanicamente, Gregório tira os óculos, passa a mão na testa e vê uma menina, de vestido amarelo, na porta da lanchonete – imagem desbotada pela miopia e destoada da realidade. Coloca os óculos para enxergar melhor, mas a criança já não está mais lá. Espanta-se.

No momento em que se levanta, olha para baixo e nota, perto do pé da mesa, um papel colorido. Pega-o, sente o perfume, abre-o e lê: “Qual é a história mais bonita que você já escreveu?”. Em silêncio, levanta-se, paga a conta e vai embora.

ARREDORES

Carlinhos corre para entregar a Gregório a carteira que esqueceu na lanchonete.

- Obrigado, garoto. Que cabeça a minha! Não é pra menos: acabei de ver uma menina com um vestido amarelo, que parece um fantasma.

- Quê? Li agora mesmo uma parada assim no meu celular.

- Não entendi. Como assim?

- Olha só, meu amigo me mandou um zape... Vou ler: “Cara, vi algo sinistro aqui, tô arrepiado. Uma menina de vestido amarelo tava aqui no quintal de casa! Louco, mano! Não sei se era fantasma...”

Enquanto isso, Ana Lúcia entra tensa na sala dos professores.

- Você tá bem? – pergunta Jairo, colega de Educação Física.

- Amigo, você não vai acreditar: eu vi uma imagem mega estranha no pátio: uma menina que não parecia ser deste mundo. Ela estava com um vestido amarelo...

- Que louco! Eu tô lendo uma notícia de uma criança que foi atropelada. Olha aqui – mostra o celular. – A notícia diz: “... a vítima era uma menina, que usava um vestido amarelo”.

EMARANHADOS

Ana Lúcia está intrigada com a notícia. Tenta achar uma forma de ter respostas rápidas:

- Já sei! Conheço um jornalista, um cara gente boa, que participou de um projeto aqui na escola. Faz um tempinho que não falo com ele, mas ainda tenho o telefone dele. Ele é editor de jornal. Tá sempre bem informado. Talvez ele saiba mais detalhes sobre esse acidente.

O celular de Gregório toca.

- Ana Lúcia? Professora?... Ah, sim, claro, eu me lembro de você... O quê? Atropelamento? Não sei nada sobre isso não... Não, não tô mais trabalhando em jornal... Espera aí? Menina de vestido amarelo? Só pode ser brincadeira!... Desculpe falar assim, mas isso é muito estranho.

Ele conta à Ana Lúcia o que lhe aconteceu.

- Jairo, você não vai acreditar... – diz a professora ao desligar o celular. – Ele teve a mesma visão.

- Quem? O jornalista? O jornalista também viu a tal menina?

- Sim. E também encontrou um bilhete com uma pergunta.

- Pergunta? Que pergunta?

A professora relata, com mais detalhes, o que lhe aconteceu.

Jairo sugere:

- Eu acho que você devia ligar de novo pra esse seu amigo jornalista e marcar pra conversar pessoalmente com ele.

Duas ligações – de Gregório a João Paulo e de Ana Lúcia a Gregório – preparam o caminho dos emaranhados à convergência.

O jornalista sugere a Ana Lúcia um encontro com ela e com João Paulo.

A professora suspeita que João Paulo seja seu aluno do nono ano, que vem faltando às aulas.

- Tem o número desse menino?

- Vou pedir pro amigo dele aqui e já lhe passo.

Ana Lúcia recebe mensagem com o contato de João Paulo e liga para o garoto.

CONVERGÊNCIA

João Paulo está sozinho em casa. A mãe dele trabalha o dia todo e o padrasto, embora não trabalhe, só retorna para dormir.

O menino está todo sem jeito. Não tem nada para oferecer. Só pão e ovo...

– Relaxa, João. Só viemos conversar. Não se preocupe com nada – tranquiliza Ana Lúcia, com fala suave e horizontal.

- Só traga um copo de água, por favor – pede o jornalista.

Os três não encontram seus bilhetes. Os papéis, misteriosamente, desapareceram. No entanto, lembram, com exatidão, quais eram as perguntas.

Após Gregório revelar o que estava escrito no bilhete que encontrou, Ana Lúcia fica perplexa:

- Sério? - olha ao longe, respira fundo e continua:

- Quando você participou daquele projeto de oficina de jornal na escola, eu lhe perguntei isso. Lembra?

Gregório não se lembra. A professora rememora:

- Eu queria saber qual foi sua melhor reportagem. Só que perguntei assim: “Qual é a história mais bonita que você já escreveu?”. Sua resposta foi linda. Eu pedi que repetisse e a anotei no meu bloquinho. Sempre carrego esse bloquinho na minha bolsa.

Faz uma pausa para pegar o pequeno bloco de anotações. Folheia-o e continua:

- Aqui está. Você respondeu: “A mais bonita história é aquela que ainda não escrevemos. E a certeza disso é o que nos impulsiona a viver mais e melhor”.

O jornalista reflete sobre o que ele mesmo havia dito e contrasta com sua vida. Pede, em seguida, para João Paulo revelar sua pergunta.

- Agora, eu me lembrei bem de você! – emociona-se o jornalista ao escutar o garoto. – Na oficina sobre jornalismo, que fiz na escola, você disse algo bacana, que eu usei dias de-pois pra escrever um artigo.

- Acho que o senhor tá enganado. Eu só tiro nota baixa, já reprovei... O que eu podia dizer de bom pro senhor?

O jornalista está certo de que foi João Paulo. Lembrou-se perfeitamente de seu rosto.

- Foi assim. Na oficina, eu perguntei: “Que marca vocês querem deixar na vida?”. Sua resposta, João, foi maravilhosa. Você disse mais ou menos isso: “Não precisamos deixar uma grande marca, mas devemos, todos os dias, marcar as vidas das pessoas que nos cercam. A marca somos nós mesmos. Não se trata do futuro e, sim, do presente”.

João Paulo coça a cabeça e sorri, com orgulho:

- Caraca, véio, falei isso?

O jornalista confirma e digita algo no celular.

- Achei. O artigo é este.

No texto, intitulado “Não vamos falar de futuro”, Gregório relata a cena na escola e afirma que o tempo de cada um é o seu presente, que a vida se faz no durante e não na mera expectativa do final... Lê parte do artigo. Depois, pergunta à professora sobre seu bilhete.

– Sério memo, professora? Sem brincadeira, a gente falou sobre isso... Caraca, sinistro! Te juro, professora – exclama João Paulo assim que Ana Lúcia revela sua pergunta.

- E como foi?

- Bem... foi mais ou menos assim: a senhora tava dando aula, coisa e tal, falando sobre vários países, os mais ricos, os mais pobres, essas paradas... Nisso, alguém pergunta qual era o lugar onde as pessoas viviam melhor. Aí a senhora respondeu um país lá que não me lembro qual é. E eu, assim do nada, soltei essa: “E como ser feliz?” É, professora, fiz essa pergunta...

- E você se lembra, João, de minha resposta?

- Ah, professora, eu fiz igual à senhora: anotei no meu caderno.

O menino pede licença pra buscar o caderno. Depois de algum tempo, volta à sala e diz com sorriso maior que o rosto:

- Achei. Tinha anotado rápido. Depois passei a limpo. Oh, foi assim sua resposta: “A felicidade não é um tesouro a ser encontrado. Deve ser construída e, muitas vezes, é feita na dor. A ferramenta pra esculpir a tristeza e gerar a felicidade é a coragem. Ter coragem é agir com o coração”.

Sem disfarçar as lágrimas e o rosto triste, o menino continuou:

- Pô, professora, tô malzaço, de alma ferida. Mas a gente conversando essas paradas aqui, começo a achar que dá pra ser feliz. Mas é preciso ter coragem. E coragem não tem nada a ver com as ideias que eu tava tendo.

Apesar de triste, o olhar do menino era de convicção.

A MENINA DO VESTIDO AMARELO

Em outro ponto da cidade, uma menina abre os olhos para o espanto e a felicidade dos pais, que a observam em um quarto de UTI.

- Graças a Deus! – agradece a mãe e beija a testa da filha.

- Incrível! Pela gravidade do acidente, ela iria demorar mais tempo em coma. Vou chamar o médico – surpreende-se a enfermeira, saindo, às pressas, do quarto.

Por trás do sorriso choroso da mãe, estão as lembranças dos últimos acontecimentos. A filha fizera sete anos havia dois dias. Ganhara de presente um vestido amarelo que tanto queria. No dia seguinte, acordou cedo, colocou o vestido e foi brincar. Estava muito feliz. Uma vizinha comentou:

- Como ela fica linda de amarelo!

- Amarelo é a cor da vida – respondeu a mãe.

Foi nesse momento que um carro, em alta velocidade, invadiu a calçada, atropelando a menina. O vestido amarelo foi tingido de vermelho.

A mãe se lembrava disso tudo enquanto enchia a filha de beijos.

- Mãe.

- Oi, minha filha.

- Eles acertaram as perguntas.

- Eles quem, filha? Que perguntas?

- Ela deve ter sonhado – opinou o pai.

A menina objeta:

- Não foi sonho não, pai. Fui eu que escrevi as perguntas. A Vida me deu lápis e papel bonito, colorido e cheiroso... Aí eu fiz os bilhetes...

- Como assim filha? Você disse “vida”. Está falando da sua vida? – pergunta o pai, confuso.

- Não, pai. Eu tô falando da Vida. Da Vida, pai! A Vida é linda, tem uma flor amarela nos cabelos, sorriso de Sol e conversa tão bonito como os cantos dos passarinhos.

Os pais, estupefatos, nada dizem.

A menina, com o rosto em festa, comemora:

- Eles já sabiam as respostas, só tinham esquecido. Na verdade, na verdade, todos sabem, mas precisam ouvir as perguntas.

Osvaldo Júnior

Osvaldo Júnior
Enviado por Osvaldo Júnior em 26/09/2021
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