Aquilo me causava imenso prazer

PRAZER OCULTO

Parte1

O socorro

O relógio da parede da sala marcava exatamente vinte e uma horas quando o socorro chegou. Levaram oito minutos para chegar à casa que ficava a pouco menos de dois quilômetros da cidade, à Rua Hoban Road 1701. Não poderiam ter levado mais que cinco minutos para esse percurso. A Região é muito tranquila, valorizada e arborizada. A casa era uma construção mista de dois pisos em estilo colonial do início do século XX. Possuía amplas janelas em veneziana, quase sempre fechadas. Apenas uma folha da veneziana ficava aberta esporadicamente e uma varanda que se estendia por toda a extensão frontal. Deixaram a viatura na rua, pois o acesso à casa estava interrompido devido obras na distribuição de gás. Passaram com a maca por uma rampa improvisada e cruzaram os cinquenta metros de jardim. Um gramado muito bem cuidado onde imperava uma magnólia branca e uma cerejeira florida, como na cidade toda. As cerejeiras são um espetáculo à parte nessa época do ano. A porta principal dava acesso à sala de estar, Um local de pouca luz direta, pois havia três quadros na parede que Sam tratava com muito cuidado. Eram duas telas, uma expressionista, o Grito, de Munch e outra surrealista, Guernica, de Pablo Picasso. Havia outra do lado oposto, sob a lareira, o Mapa do Inferno, de Botticelli, a qual causava um estranho encantamento. Nunca se discutiu sobre a autenticidade delas, mas Sam não se importava com isso e não estamos aqui para discutir isso. Toda mobília da sala mantinha um estilo colonial, feitos em madeira pau Brasil. O sofá, também era de estrutura do mesmo material com almofadas em veludo na cor vinho. O ambiente era iluminado por dois castiçais de teto com cinco lâmpadas fracas em cada um deles. A luz projetada da cozinha invadia o espaço pelo corredor dava um tom avermelhado a metade do ambiente. Quando a lareira estava acesa, quase sempre estava, as sombras se multiplicavam e seus reflexos davam movimento às imagens nas telas. As duas diretamente e o Botticelli recebia flashes de luz e sombra refletidos por um espelho de um metro e meio quadrado posto entre as duas telas.

Entraram pela sala, viraram o olhar para cima a esquerda, na escada e seguiram a orientação de seguir para a cozinha.

As escadas que dá acesso ao piso superior ainda mantinha a sua originalidade. Fora construída em mogno vermelho envernizado. O mesmo material dos corrimãos. Subia por vinte degraus que depois se dividam para dois lados com quinze degraus que acendiam ao mezanino superior cujo guarda corpo, com um metro de altura, era do mesmo material. As escadarias da residência eram reveladoras. Cada um de seus degraus dava a impressão de um diferente nível de entendimento. Entendimento esse que separa o mundo sensível do inteligível, uma ascensão que é capaz de produzir efeitos concomitantes de angústia, medo e temor. Da mesma forma que une a terra ao céu, Cristo à sua cruz.

Fora difícil os primeiros dias com Sam nessa casa.

O corredor entre a sala e a cozinha tinha quatro metros com uma porta de cada lado onde ficavam uma biblioteca do lado direito e a sala de jantar, do lado esquerdo. Era um corredor amplo, com dois metros de largura, com suas paredes brancas amareladas e nenhuma decoração, a não ser uma pequena cômoda, logo na entrada, onde ficavam as chaves e a medicação.

Os dois socorristas invadiram a cozinha. O rapaz era um negro com um metro e oitenta, rosto muito bem definido, braços largos e olhar sereno, mas extremamente objetivo, aparentava uns vinte e quatro anos. A moça era uma jovem médica, que aparentava ser um pouco mais velha que seu assistente. Tinha grandes olhos negros bem definidos, uma sobrancelha bem feita e mantinha seu cabelo trançado e preso, mas que não impediam de perceber que eram longos e lisos. Um pouco menor que o rapaz, era extremamente prática em dar ordens. Fazia-o de tal forma que dificilmente alguém a contestaria.

O rapaz correu os olhos rapidamente pelo local. Ao contrário do restante da casa, esse era o espaço onde imperava a modernidade. Toda circundada por granito marrom imperial e armários brancos, as torneiras tinham a cor ouro polido e uma janela com grades para os fundos da casa. Ao lado dela uma porta que dava acesso ao deck exterior. A casa era uma mistura de passado e contemporaneidade. O limite da residência quase se confundia com Glover Archbold Park. Do lado oposto ficavam a pia e um fogão de indução preto. Abaixo dele, um forno elétrico e, no final da mesma parede, um refrigerador duplex branco.

No centro da cozinha, uma mesa em granito da mesma cor do restante. Media um metro por dois com um prato giratório ao centro feito em vidro marrom fumê. Seis cadeiras em madeira nobre e forradas com suede bege.

O lugar estava perfeitamente limpo e arejado, a porta e a janela estavam abertas, Ainda era começo de primavera, embora o clima fosse ameno nesse meio de estação, hoje o calor estava intenso.

Sam estava sentada na cadeira da ponta, como sempre o fizera. Desde que veio para essa casa. A cabeça caída sobre a mesa com seus longos cabelos lisos que caiam pela borda e faziam movimentos pendulares descompassados, conforme a pouca brisa entrava. Seu braço direito estava sobre a mesa, apoiando a cabeça e o esquerdo, solto, pendurado e imóvel. A pequena mão entreaberta permitia perceber as unhas dos quatro dedos que ainda tinha muito curtas e roídas, porém delicadas. É sinistra e ao perder o dedo mínimo ainda menina, aprendeu a usar e escrever com a mão direita. Suas pernas estavam trançadas numa elegância que era a peculiar em Samantha. Os delicados pés, recobertos por uma pantufa violeta que ganhara de uma brasileira que conheceu na faculdade. Sam era muito apegada a quinquilharias. Vestia uma calça pantacourt bege em tecido de linho com viscose tinha o comprimento entre o joelho e a canela, mais parecia uma bermuda larga, mas com um shape mais solto. O cós prolongado com elástico e babado embutido, cordão para amarração com acabamento em tassel quase consumiam com seus um metro de cinquenta e nove e as pregas frontais e os bolsos davam a impressão de que ela tinha bem mais que quarenta e cinco quilos. O pouco corpo que ainda restava para ser coberto ficava sob uma regata crepe básica branca que cobriam apenas seus pequenos seios, deixando a mostra sua delicada e aveludada pele, mais branca que o normal, em todos os vinte e dois anos.

Os pequenos e negros olhos de Sam estavam parados e suas pupilas dilatadas e paradas, a longa sobrancelha cerrada sobre os olhos, a pele fria e um pouco amarelada, não se percebia respiração, nem mesmo respondia a chamados e estímulos.

Sobre a mesa uma caixa de trifluoperazina vazia, uma taça de cristal com água pela metade, uma caneta preta e um diário de capa dura na cor cinza e um jornal com a manchete de trinta e um de março.

A dupla pôs Sam deitada no chão e a médica colocou a mão sobre o pulso de Sam e buscou pela atividade cardíaca, imediatamente, a médica afrouxou-lhe as roupas, o cordão da calça, elevou seu pescoço para desobstruir as vias aéreas, cortou as alças da regata de Sam e abaixou-a, deixando a mostra seus pequenos seios e bradou em tom enérgico.

— Desfibrilador

Enquanto o rapaz reparava o equipamento, ela se posicionou de frente para Sam e encheu-lhe os pulmões de ar, num beijo longo e profundo. O rapaz deu-lhe o aparelho já com gel nas pás e ela o regulou a 360 jaules. A médica guardou que o rapaz se afastasse e quando ouviu um sinal sonoro, acionou o aparelho. O fragilizado corpo de Sam quase saiu do chão.

A caça

A névoa da manhã ainda não dissipara e o orvalho era forte. Ainda não havia luz do sol por entre as árvores e os arbustos. A temperatura na mata era de doze graus, alguns pequenos animais já se arriscavam a circular pela floresta em busca de alimento. Duas barracas ainda estavam com seus zíperes fechados, mas já tinha alguém na espreita. A fogueira fora apagada, só restaram cinzas ainda quentes.

Um estampido seco ecoou pela mata adentro, não era possível identificar de onde viera, pois se repetira uma quatro ou cinco vezes, como se a ninfa Eco estivesse a repetir o sinal de mais uma tragédia. As aves revoaram e os pequenos animais buscaram o primeiro refúgio que se ofereceu.

Depois, silêncio.

— Sami, venha aqui!

A porta de uma das barracas se abriu e uma pequena garotinha de cinco anos saiu em disparada que mal completara quatro anos correndo em círculos.

Ainda vestida de pijama, foi alcançada por sua mãe que lhe puxou pelo braço pra junto de si.

— Aonde você pensa que vai, mocinha? Vestida assim. Quer adoecer?

— Sami, venha logo! A voz repetiu e agora foi possível apontar a direção.

A mulher vestiu-a com uma jaqueta de couro marrom forrada e com capuz e uma calça impermeável.

A pequena saiu a galope em direção ao chamado.

— Não a deixe ir sozinha, disse a mulher.

A mulher, muito parecida com a menina ficou observando a filha sumindo por entre os arbustos. Apenas usa feição parecia ser mais tranquila.

A menina correu na direção de pai e quando percebeu a morte, parou estática e virou-se para mim. Parecia pedir por socorro. A espontaneidade sumiu de sua face.

A insistência do pai trouxe-a de volta a realidade.

Insegura, ela caiu três vezes até encontrar o lugar onde estava o pai, com as duas mãos agarradas a minha mão esquerda. Na outra, um pequeno punhal que Sami deixara cair.

O pai era um homem de meia idade, cabelos mais grisalhos que deveria e encaracolados. Tinha uma expressão sisuda e as sobrancelhas largas e longas, seus olhos claros davam uma pequena impressão de simpatia. Trajava calça jeans índigo blue suja de lama e uma jaqueta verde camuflada com capuz. Estava de joelhos de frente a sua presa.

— Veja como nossa família não precisa de um segundo tiro, Sami! Mesmo você sendo menina, vai aprender como se faz.

A menina se aproximou da presa e quando estava a uns três metros parou abruptamente.

Os olhos parados e abertos do alce capturado causou-lhe mais terror. O corpo ainda quente soltava uma névoa de vapor e exalava um forte odor característico do animal. Pesava em torno de quatrocentos quilos e media um metro e setenta. Sua pelagem era escura e a galhada tinha secção cilíndrica e formato de taça. Essa tinha um metro e quarenta de amplitude. O animal fizera tanta força para sobreviver que defecou após ser alvejado.

Sami não tirava os olhos dos olhos do animal. Parecia vivo. Seus olhos arregalados e parados deixavam escorrer lágrimas. Apresentava longas pernas e um pescoço curto. Seu corpo todo tremia.

— Ele... Está com frio, papai.

— Esse não sentirá mais frio, Sami. Está morto. Essa tremedeira são seus músculos.

— Estou com medo!

— Medo não existe em nossa família. Venha aqui tirar uma foto comigo. Medo é coisa de mulher fraca.

A pequenina foi em direção ao pai com os olhos vidrados no animal. Quando se aproximou, fechou os olhos. Nitidamente percebia nela o pânico. Seu olhar era de quem me pedia por socorro.

O pai ordenou que abrisse os olhos para a foto e que segurasse no chifre do animal. A menina abriu os olhos lentamente e quando tocou a chifre do animal, este estremeceu inteiro.

Sami deu um pulo e gritou horrorizada. Seu grito ecoou diversas vezes mata adentro.

Hospital

III

— Ela voltou!

O rapaz assumiu a massagem cardíaca em Sam enquanto a médica colocava o respiradouro.

Fora a terceira tentativa dos socorristas. Samantha urinou.

Foi colocada na maca e envolvida com uma manta térmica. A médica acionou a central pelo rádio transmissor, informando os procedimentos que deveriam ser preparados.

— Vá para o hospital.

A ambulância gastou agora cinco minutos para o retorno. Entre a chagada à residência e o retorno ao hospital foram gastos trinta minutos. Trinta minutos que deixaram Samantha tecnicamente sem vida.

A equipe médica já aguardava por ela. Foi encaminhada diretamente para a unidade de tratamento intensivo. O chefe da equipe ia falando procedimentos a serem executados e medicamentos a serem administrados. Entraram na sala restrita.

A recepção de hospital e os corredores estavam tranquilos e vazios, apenas duas pessoas aguardavam na recepção e um rapaz que fazia curativos.

Na parede atrás de recepcionista uma figura na parede fazia o sinal de silêncio e um crucifixo logo acima me fez retomar o Botticelli.

A morte é um desafio que atormenta e incomoda o homem e sua pretensão de vida eterna. Aquele lugar representa a onipotência humana, como Sísifo que ludibriou e encoleirou Tânato, provocando a ira de outros deuses. Como poderia Hades ser um deus sem mortos? E Ares, como consumaria uma batalha?

Esse lugar não atende aos deuses. O hospital público não é capaz de mostrar a viagem no caos dos nove níveis do inferno. É o próprio inferno, onde as pessoas moribundas pelos corredores e amontadas em macas permanecessem até serem chamadas ao Hades, mas, ainda assim, não teriam nenhuma moeda para pagar a travessia. Por isso ficam vagando nos corredores dos hospitais .A miséria é uma herança da humanidade para ela mesma.

Sami entrou neste lugar e sairá, não sei até quando. Ser atendido em oito minutos é algo que só uns poucos são capazes de comprar. Para a maioria, o inferno tem muitas entradas. O hospital público é uma delas.

— A paciente voltou, avisou o médico. — De certo modo ela morreu, mas a trouxemos de volta.

Samantha enganou a morte duas vezes.

O acidente

IV

Sentei-me ao lado de Sami no banco de trás. Eu atrás de Richard e Sami atrás de Susan. Já não usava mais cadeirinha.

Não via a hora de ir embora. Eu detestava esse programa anual. Para Sami, era indiferente. Já com doze anos, ela ficou diferente desde sua primeira experiência na floresta.

Levantei a cabeça devagar, sentia uma leve tontura. Talvez fosse o calor, não sei. Não reconheci o lugar, mas a névoa era muito densa e tudo estava quieto. Tentei me equilibrar apoiando nas pedras que estavam no meio caminho. As pedras que geralmente são obstáculos que alteram ou prolongam uma vida toda, hoje são minha muleta.

Olhei para os lados e não percebi a presença de ninguém. Comecei a caminhar sem direção, só ouvia o estalar dos galhos secos que pisava. De repente parei... Tive a sensação de que havia outros passos. Interpretei que pudera ser a ninfa que me acompanhava. Desci a ladeira e cheguei a um riacho, só me dei conta quando já estava dentro dele. Uma água rasa com fundo de pedra que permitia que eu me espelhasse. Lavei o rosto e meus olhos verdes estavam irritados. Parecia que não dormia há séculos. O cabelo todo emaranhado, jogado de lado barba e bigode por fazer e a pele toda manchada de sol, mais abaixo, um grupo de filhotes de alce tomavam água.

Mergulhei a cabeça em um lugar um pouco mais profundo. Abro os olhos e uma linda imagem daquela que já foi pássaro e agora habita as águas com suas lindas caudas escamadas.

Os longos cabelos longos espalhavam com tentáculos nas profundezas e aquela sirena me beija. Foi um encantamento que veio acompanhado de uma suave melodia de harpa tibetana. Eu me sentia completo. Seus cabelos se entrelaçaram aos meus, sua boca a minha boca, seus braços aos meus. Aquilo era longo, profundo e eterno. O som foi diminuindo à medida que eu segurava o ar nos pulmões e, quando já não aguentava mais, resolvi abrir mão do prazer.

A sirena estava toda enrolada a mim e me puxava para dentro daquela água rasa. Não entendia, o desespero não permite lugar para a razão. Então lutei.

Uma voz estranha sussurrava

— Mata ele. Mata ele.

Debati-me e consegui me debater e escapar dela. Joguei a cabeça para fora do rio e deixei o ar entrar queimando em meus pulmões. Porém, quando abri os olhos, aquele gigantesco alce corria em minha direção.

Não tive tempo de correr. As pernas ainda estavam presas às águas e não podia mergulhar.

—Mata. Mata, repetiu a voz.

O animal veio armando o chifre e peguei um pedaço de pau que consegui e golpeei-o, uma, duas, três vezes.

— Mata. Mata. Mata.

Tudo começa a rodar e, de repente, silêncio...

— Olha o que você fez, dizia uma voz.

— Eu não fui ele.

Agora outra voz dialogava.

Abri os olhos e tinha sobre o meu colo o corpo de Samantha todo ensanguentado. Na mão esquerda, o punhal. Ela estava, pálida, imóvel e fria.

Desvencilhei-me do punhal e abracei-a e tentei levantar. Virei os olhos para o lado. O carro estava de ponta cabeça no fundo do riacho e a mãe de Sam com o a cabeça mergulhada dentro da água, presa aos cabos que prendiam o alce na carroceria. Tinhas as mãos cerradas e as unhas enterradas na palma da mão. Morta.

Richard estava ao lado, sobre uma pedra com o chifre do alce atravessado sob seu abdômen, seu olho ainda aberto, parado e fixo em mim.

Não vi o alce, então, tudo ficou escuro. Apaguei.

O orfanato

Tentei abrir os olhos, mas o clarão queimava minha vista. Fui acostumando os olhos ao ambiente até que consegui abri-los. O céu estava muito limpo, poucas eram as nuvens percebidas. O vento era brando e tranquilo. As árvores fechavam todo o entorno do lugar. Cerca de cinquenta metros de onde eu estava, havia um muro de cerca viva com uns três metros de altura e circundava todo o lugar, só era interrompido pela portaria, onde havia uma guarita envidraçada.

A forma com que era cuidada a cerca viva me lembrava da história do menino que foi até ao céu num pé de feijão.

Algum dia eu ainda irei para o céu, pensei.

Eu estava deitado na grama onde havia quinze mesas de concreto acabadas com pastilhas coloridas. Na parte frontal da mesas havia um playground construído em madeira de carvalho nas cores vermelho, branco e azul. Atrás do outro lado do playground, uma cancha de basquete. As mesas ficavam em um imenso gramado muito bem cortados. Todo dia, as dezoito e trinta, pontualmente, os irrigadores eram acionados.

O lugar era habitado por mim e mais cinquenta meninos de até quinze anos, que de alguma maneira foram parar neste lugar.

Cheguei aqui com oito anos. Em quatro anos, três famílias já me levaram e me devolveram, dizendo que havia algo errado em minha personalidade.

Não tenho recordação de como vim parar neste lugar. Só lembro-me de um incêndio e uma mulher gritando por socorro.

Os meninos passavam o dia entre o jardim e a quadra. Acordávamos às sete horas, arrumávamos as camas e o alojamento. Após o café, fazíamos a leitura diária e deixavam-nos aqui até o almoço. Os meninos, a maioria, na quadra e uns poucos preferiam o jardim. Eu prefiro o isolamento. Não gosto do contato deles. Parecem idiotas demais. Tratam este lugar como um paraíso. Não param nunca. As vozes me incomodam. Elas não saem da minha cabeça.

Peguei um comprimido que ficara sob a mesa junto de um pequeno copo plástico com água. Coloquei-o na boca, mas ainda não tomei água. Deixei-o soba língua, mudando-o de lado até que derretesse. Eu queria senti-lo. Queria saber seu sabor. Um gosto amargo começou a espalhar na minha boca que se encheu de saliva. Engoli de uma vez só. Socorri-me do copo e ele se partiu. Olhei para os lados, com a boca amarga e sedenta.

Fiz isso uma única vez, porem, era um ritual de todos os dias.

Tinha a nítida impressão que todos olhavam para mim. Todos me olhavam. As vozes me revelavam.

— Tom, venha aqui !

Olhei de súbito em direção à porta da administração.

Levantei-me. Ajeitei as roupas e segui para a sala de visitas.

Entrei na sala cabisbaixo e em silêncio. Era recomendação da nossa coordenadora Senhora Ann Margret.

— Estes é o senhor Richard Weilyn e sua esposa, a senhora Susan Weilyn e a pequena Samantha. Vieram para te buscar para seu novo lar, Tom.

Como das outras vezes agradeci e fiquei observando aquela menininha que me olhava sorrindo.

—Arrume suas coisas, disse a senhora Weilyn. Hoje você também passa a ser um Weilyn.

— Sim senhora.

Pedi licença e fui para o dormitório fazer minha mala. Cabiam em uma mochila. Eu já sabia a rotina.

Meia hora mais tarde, o portão se abriu e saímos. Olhei para trás e jurei que nunca mais voltaria.

Hospital

Eu estava parado defronte a recepção, observando o crucifixo, quando a voz da recepcionista interrompeu minha viagem, trazendo de volta.

— Preenchi os dados da paciente. O senhor precisa responder umas perguntas. São protocolares.

— Pois não, respondi ainda com o pensamento distante.

— Qual é seu parentesco com a paciente Samantha Weilyn.

— Irmão.

— E os pais?

— Somos somente Sam e eu. Nossos pais morreram.

— Sinto muito, disse a moça em tom respeitoso.

— Ela faz uso de alguma medicação?

— Não. Apenas analgésicos, esporadicamente.

— A equipe de resgate relatou que tinha uma caixa de medicamento próximo a ela.

— São meus. Devo tê-los deixado sob a mesa.

— A paciente já teve fez isso outras vezes?

— Não. Nunca fez isso antes.

— Obrigada, senhor...

— Tom, Tom Weilyn, completei.

O médico permanecera ali na recepção e testemunhou minha entrevista disse á recepcionista alguns encaminhamentos e, virando-se para mim disse que Sam ficaria em observação pelos próximos dias. Pelo menos sete dias.

— O senhor já pode vê-la. Ela está sedada. Ficará assim por um bom tempo ainda, disse o médico.

Deixei a recepção, passei pelo balcão de informações e parei em frente a grande janela que dava para o estacionamento. Já era primeiro de abril. Bem que tudo isso poderia não passar de uma mentira. O céu estava sem nuvens, a lua cheia deixava a noite clara. Tudo estava deserto e vazio.

Fiquei ali contemplando a noite. Há quem diga que ela pertence aos mortos. Sempre gostei dela. Talvez seja por isso que sou atraído pela escuridão, pelo silêncio e isolamento. Percebo que são raros os momentos de lucidez, onde posso refletir nos feitos e malfeitos. Não existe benfeitos. Nesses momentos lembro-me de certas leituras que vieram até mim através de Sam, como a de uma escritora que diz estar procurando, tentando entender e dar a alguém o que vive, mas não sabe a quem dar e não quer ficar com sei vivido. Como ela, essa desorganização me amedronta.

O que eu vivo e vivi, não sei se servirá para alguém. Uma história interrompida e fragmentada, que se alimenta de flashes ou de imagens incompletas, de coisas que não sou capaz de dizer se são verdadeiras ou construídas no trauma. Nem sei se tenho algum trauma ou se isso faz parte da minha personalidade.

Em alguns momentos, sinto que não pertenço a este mundo. As pessoas não significam nada, as coisas não tem importância alguma, até que me vem a imagem de Sam. As vozes voltam e interrompem meu silêncio.

Segui em direção ao quarto em que Sam estava. Ficava no final do longo corredor pouco iluminado. Segui lentamente e à medida que caminhava, o quarto ficava mais distante.

Sam dormia tranquila, agora. Seu rosto ainda estava pálido, mas já tinha algum sinal de melhora. Não estava sob nenhum tipo de aparelhos, apenas um soro com medicação. As enfermeiras lhe puseram roupas do hospital. Eram azuis claras com detalhes em branco. O braço direito estava solto, caído e ela estava de cúbito frontal. Seus cabelos estavam embaraçados. Estava viva e isso importava.

Ajeitei-lhe o braço ao lado do corpo com cuidado. Tinha receio de que despertasse e não saberia o que dizer para ela.

Fiquei ali a observar sua fragilidade e dependência. Samantha sempre fora dependente de terceiros. Desde o acidente com seus pais, Sam nunca mais fora a mesma.

Sam se amparava em mim desde que fui adotado pelos Weilyn. Subia e descia as escadas da casa pulando de dois em dois degraus, às vezes arriscava três e, quando caía, rolava escada abaixo. Corríamos, jogávamos bola dentro de casa para o desespero de Richard e seus quadros raros. Muitas vezes ele disse que me devolveria para o abrigo se quebrasse um quadro dele. Foram anos intensos, em que pese a dificuldade dos primeiros dias com Sam. Um período em que as vozes se acalmaram. O envolvimento com Sam tomava todo meu tempo. Eu tinha o hábito de descer asa escadas escorregando pelo corrimão e ela queria fazer igual. Trazia ela pela mão, mas queria ser independente. Certa vez a vi tentando se equilibrar no guarda corpo do mezanino. Disse que queria me imitar. Nunca mais subi no guarda corpo, principalmente depois do acidente em que Sam ficou sem o dedo.

Meus pensamentos foram interrompidos um barulho fora do quarto. Decidi sair antes que despertasse.

Na recepção um homem discutia com a atendente o fato de seu plano de saúde não cobrir a emergência. Seu seguro hospitalar não abrange internações hospitalares e cuidados em centros de enfermagem especializados, apenas serviços preventivos.

O homem trouxe seu filho com a perna quebrada. Um atendimento que pode custar sete mil e quinhentos dólares. Dependendo da complexidade do atendimento necessário é possível uma pessoa ir à falência. Cerca de cinquenta e nove milhões de americanos não possuem convenio médico. Parece ser um numero inexpressivo, se comparado com outros países que dispunham de atendimento público gratuito. Aqui, as coisas são diferentes e o atendimento público é seletivo e complexo. É explicável o fato dos hospitais ficarem vazios, uma vez que sua clientela é restrita, não cabe às pessoas buscarem ajuda onde não lhes serão dada. Certa vez assisti a uma reportagem sobre hospitais públicos no Brasil e vi pessoas amontoadas pelos corredores, esperando uma luz que os curasse, mas estavam mais perto de Hades que da cura. Se esse hospital se perece com a jornada pelo inferno que Virgílio propõe a Dante, que só aceita por Beatriz. Neste aqui, até as portas do inferno estão fechadas.

O Portal do Inferno não possui fechaduras, somente portal com um aviso de advertência dizendo que uma vez dentro, deve-se abandonar toda a esperança de rever o céu, pois de lá não se pode voltar. A alma só pode escolher pelo céu ou inferno se estiver viva. Mortos não raciocinam. As vozes voltaram.

Ás vezes temo em ficar no vestíbulo do inferno, sem conseguir atravessar o rio.

De volta pra casa

Saí sem ser notado em meio aquela confusão que se instalou no hospital. Era três e trinta da manhã quando entrei dei partida no carro. A rua estava deserta e limpa. Os sinais de trânsito estavam piscando no sinal amarelo e eu seguia sem pressa de chegar. As luzes da iluminação pública passavam por mim lentamente, uma após a outra em um movimento sincronizado de seis lâmpadas e um sinal de trânsito piscando. Isso foi se repetindo e ficando cada vez mais rápido. Também começaram a surgir muitas vozes na minha cabeça. Tudo ia se intensificando, me agonizando, até que tudo ficou claro, mas sem nenhuma imagem. Meus olhos ardiam, não via nada. Fechei-os e ao abrir, um alce estava parado no meio da rua vindo em minha direção. Pus o pé no freio, fechei os olhos e aguardei o impacto.

O carro ficou parado no meio da rua, abri os olhos, olhei pelo retrovisor, desci do carro. Não havia nada além do silêncio.

— Impossível, gritei

Segui para casa sem entender o que acontecera. Aquele animal fez voltar lembranças das quais pensara que já estivessem no esquecimento, Richard, Susan, o alce, o abrigo. Já não bastava as vozes, agora vejo coisas?

O percurso de cinco minutos pareceu interminável. Ao entrar, fui direto para a cozinha sem olhar para as paredes da sala, principalmente para o Botticeli. As luzes da cozinha ficaram acesas. Peguei um copo com água e sentei-me na mesma cadeira em que Sam estava. As imagens recentes ainda estavam frescas e inexplicáveis. Tentava encontrar uma forma de esquecê-las, de afastá-las de mim, mas eram presentes. A caixa de remédios ainda estava ali, mas vazia. O diário de Sam também estava ali.

Quais serão os segredos de Sam, pensei. Que crime estaria eu cometendo, se não há testemunhas para me delatar? A privacidade de alguém pode ser invadida sem que haja razão ou permissão para isso?

Trouxe o diário para perto de mim e fiquei observando seus detalhes e se teria nela algo sobre mim. Se tivesse, eu teria o direito de saber e só saberia se a abrisse.

VIII

O diário

Ao meu amigo oculto:

Olá amigo imaginário. Sei que você está aí em algum lugar, mas não gosta de aparecer. Não tem problema, porque sei que está me ouvindo.

Tenho muitas coisas pra te contar, muitos segredos. Coisas sobre mim e Tom. Acho que ele não se importaria se eu falasse sobre ele e o quanto eu preciso dele. Afinal, ele é a coisa mais importante que existe e a melhor coisa que meus pais deixaram para mim.

Tom sempre teve um jeito diferente e olhar para mim, algo que me estranhava e que ainda não entendo. Nunca foi agressivo, mas não sorria com facilidade. Sou fascinada por meu irmão. Suas atitudes são sempre formais e discretas. Na verdade, ele já foi mais sorridente. Ficou assim depois do acidente com nossos pais. Acho que a forma com que tudo aconteceu e o fato de terem nos separado por cinco anos o deixou assim, principalmente por ter que conviver sozinho nessa casa com a presença constante de papai e suas coisas fúnebres de caça e a morbidez do resto da casa.

O senhor Weilyn era um aficionado por caçadas e aventuras nas matas e nos obrigava a participar. Mamãe detestava, mas sempre foi submissa às suas vontades. Nunca vi um afeto ou algo diferente partindo voluntariamente dele para nenhum de nós. Tentou fazer de mim uma caçadora e jamais aceitou o fato de eu ser menina e não compartilhar das mesmas preferencias que ele. Eu sempre odiei a vida na mata, não suportava ver aqueles animais com seus olhos opacos e distantes parados em mim. Isso me causava pânico. Jamais esquecerei aquele alce com seu chifre enorme e indefeso perante a violência de pessoas que tem o prazer em matar.

Também está vivo na memória o chifre do alce atravessado na barriga de meu pai. Poderia ser uma vingança da natureza ou sei lá. Meu pai não me deixou razões suficientes para sentir saudades. As crueldades que ele fez com mamãe e com Tom não me permitem lembra-lo com rancor. O pouco que aprendi com ele foi fazendo sempre o contrário do que fazia ou mandava.

Mamãe foi diferente. Sinto muita falta dela. Carrego um vazio dentro de mim que não preenche, onde quer que eu esteja, todos os dias eu me pego lembrando de mamãe e do seu jeito meigo de me confortar, de proteger Tom das ameaças do senhor Weilyn em mandá-lo de volta para o orfanato, quando Tom ficava conversando sozinho. Mamãe me punha pra dormir e não saia do quarto sem ter certeza de que eu dormira. Muitas vezes ela dormiu antes de mim, pois era só ela para cuidar de nós três. Quando Tom tinha crises então, ela se trancava com ele para que pai não ouvisse e o espancasse. Acho que Tom começou a odiá-lo nesse tempo, não sei.

Tom veio para casa quando eu tinha ainda três anos. Apeguei-me a ele ainda menina. Mamãe não podia mais ter filhos por complicações ocorridas no meu nascimento. Tom representava o desejo de meu pai ter um filho homem, que o acompanhasse em suas aventuras pelas florestas, mas Tom não era o que ele imaginava, fugia das caçadas e ficava visivelmente atormentado nesses eventos. Nas caçadas, ficava isolado em algum canto, andando de um lado para outro, resmungando baixinho como se estivesse falando com alguém. Mas sempre estava perto de mim.

Apesar do comportamento estranho, Tom sempre foi uma pessoa espetacular e quando me afastaram dele eu queria morrer. Passei cinco longos anos em um internato por decisão de testamento do senhor Weilyn.

Ficava imaginado como seria viver sozinha com Tom e as lembranças da família.

Comecei a escrever cartas para ele, mas nunca as enviei. Apenas guardei-as. Algumas eu destruí. Poderiam ser perigosas para mim e para ele.

Minha vida no internato era estudar e criar fantasias para quando voltasse para casa. Assustava-me em pensar que poderia chegar e ver outra mulher lá, ocupando o lugar de mamãe. Ocupando o meu lugar.

Nunca recebi visita de Tom até chegar aos dezesseis. Apesar de ele ter minha guarda, ele preferiu não me tirar daquele lugar. Eu o odiei por isso. E assim, encontrei uma forma de fazê-lo ver que eu existia. Só saí de lá aos dezoito anos.

IX

Solidão

Fechei o diário e tomei nas mãos a caixa de comprimidos vazia. Deixei-a passando por entre os dedos, circundando a mão e, por um momento, pensei que estava deixando Sam abandonada novamente. Não bastassem todos os anos que ficara naquele internato, a perda dos pais, e o meu afastamento, agora está sozinha no hospital e sem estar perto para quando acordar.

Por outro lado, tenho a sensação que estando longe de mim, ela estará muito mais segura. Meus sentimentos pela minha irmã me deixam confuso e atrapalhado.

Quando saiu daqui menina era minha parceirinha de travessuras. Alguém que me permitiu descobrir um pouco de sanidade dentro de mim mesmo e, principalmente, um pouco de afeto por alguém que não fosse eu mesmo. Mas quando a tiraram senti ódio do mundo e as vozes voltaram a me atormentar. Senti um desejo incomum em matar essas pessoas que a tiraram de mim. Foram tempos difíceis de suportar até que ela voltou. E voltou mulher.

Descobri então que tinham realmente roubado algo de mim. Tiraram de mim a infância de minha irmã e me devolveram uma meia irmã mulher.

A casa mostrava o silencio de todos os dias, mas hoje, alguma coisa diferente nesse silêncio me atormentava. Parecia que tinha perdido a cumplicidade até mesmo com os objetos da casa.

Deixei a caixa de remédio sobre a mesa, levantei e refiz o caminho de todos os cômodos da casa. Não sabia bem o que procurava e, se procurava, não estava encontrando. Parei na sala, de frente para a versão de Botticeli para o inferno de Dante. Tem momentos que não sei se já não estou dentro dele.

Amanhã é dia de São Patrício. A paz e o silêncio serão quebrados.

Jandersilva
Enviado por Jandersilva em 19/09/2021
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