Os Peixes - reeditado
Tive imensa dificuldade em fazer pegar o motor do meu barco. As águas da baía estavam convidativas a um mergulho, mas eu tinha que seguir viagem. O mar estava calmo; não havia ondas, mas gaivotas que sobrevoavam as águas. Eu estava longe da costa. O que minha visão alcançava era uma imensa linha de montanhas por trás de um povoado de casas das quais eu só conseguia distinguir a longa fileira de telhados, paredes brancas e janelas minúsculas vistas à distância.
Entre essas residências, pedaços de floresta com suas matas fechadas e intransponíveis. Entre mim e esse imenso horizonte velas singravam ao sabor do vento gelado do início do dia. Pelo que me contaram os companheiros a região para onde agora eu me dirigia era a mais rica em pescado. Como haviam me aconselhado, dirigia-me para lá na expectativa de fazer uma experiência. Se eu obtivesse sucesso poderia fazer parte da cooperativa. A regra era partir sozinho, sem auxílio ou dicas de espécie alguma; levaria apenas o material, orientações básicas sobre o local provavelmente propício e nada mais além da sorte e da minha vocação.
Somente agora, com o dia amanhecendo de vez, minha visão ia se tornando mais clara. Das estrelas que me serviram de companhia, duas relutavam em desaparecer para dar lugar ao brilho exclusivo do sol. Como dois pontos cintilantes no firmamento, esmaeciam-se triste e vagarosamente. Eu estava agora quase que em mar aberto. A costa, já longe e esquecida, não passava de uma sombra distante; as montanhas eram pontos enegrecidos perdidos no horizonte. Diminuí a velocidade e senti a temperatura da água. Duas horas depois, navegando para oeste comecei a distinguir a ilha de que me falaram. Não sei se era habitada; deste pormenor não fiquei conhecedor.
À medida que eu me aproximava abria-se diante de mim um cenário selvagem e abandonado; ao menos era a impressão que eu tinha do lado que me era visível. O mato estava altíssimo, escalando rochas pontiagudas. A costa era em declive onde palmeiras cresciam desordenas. Muitas pedras margeavam a ilha e eu não via como penetrar ali.
Desliguei o motor e deixei-me conduzir pelo ritmo suave das ondas. Ao aproximar-me de uma das pedras deixei-me surpreender pela quantidade de ostras que, não só aquela rocha, mas todas as demais abrigavam em sua superfície. Sobre os bancos de areia conchas dançavam num vaivém frenético, apanhadas que eram pelas ondas que batiam ali com vigor. Saltei para a água gelada e, envolto até a cintura, puxei a embarcação, tentando trazê-la para uma parte da areia cuja elevação proporcionar-me-ia um ótimo local para a pesca.
Foi difícil a manobra dada a pouca distância entre as pedras. Passei imprensado e submerso, dando espaço para o barco. Nada de mais sensato e prudente do que conhecer o local onde me encontrava; afinal, passaria ali horas na esperança de conseguir uma ótima produção que me permitisse alcançar o meu propósito que era entrar para a cooperativa. O pensamento nas vantagens e transformações positivas que isto traria para a minha vida me encheu de ânimo e eu não via a hora de começar a agir.
Como garantia, embora achasse que fosse desnecessário, coloquei no bolso da bermuda que trajava o revólver, não deixando de verificar a munição. Subi com cuidado a fraga de um pequeno monte, o que me daria uma melhor visão da ilha como um todo. Como imaginei, não havia vestígio algum de que fosse habitada; pelo contrário, o cenário era inóspito e de mata bronca e inclassificável. Arbustos desciam uma encosta íngreme. Havia alguns sinais de trilhas quase desfeitas, cobertas pelo mato, o que indicava a presença não muito recente de visitantes.
De ambos os lados flores silvestres e parasitas enfeitavam os troncos de pequenas árvores. Um regato de fina transparência murmurejava, quebrando o silêncio. Em suas águas claras desfilavam espécies coloridas de peixes. Borboletas enormes e multicores dançavam entre as flores. Libélulas rasavam sobre a água quase a tocando com suas asas duplas. Vi bandos de pássaros de rica plumagem e peito amarelo voarem assustados com a minha presença.
Embora eu descartasse a presença de animais de grande porte, dado a geografia do terreno, imprópria para eles, assombrei-me com a multiplicidade de insetos e répteis no local.
A cada um ou dois metros térmites expunham formigas graúdas carregadas de suprimento, subindo pelas folhas dos arbustos, escalando troncos de árvores, interminável exército de laboriosidade. Lagartas esverdeadas confundiam-se com o verde das folhas para se protegerem de seus inimigos. Moscas varejeiras pairavam no ar ou, com seu voo incerto, enganavam-nos a visão desaparecendo de um lado e surgindo em outro, enquanto o seu zunido insistente pervagava, impossível de não ser percebido. Pequenas nuvens de marimbondos voavam longe de mim circulando sempre um mesmo alvo, o que indicava estarem, por certo, protegendo sua casa em algum lugar por ali. Enquanto estivessem assim e eu guardando deles a devida distância, não precisava me preocupar.
Vi um lagarto, de meio metro ou mais passeando entre os arbustos com suas patas achatadas e cauda irregular que não deve ter se importado muito com a minha presença, o que achei muito bom. Aliás, não era minha intenção importunar nenhuma daquelas criaturas e nem lhes fazer qualquer espécie de mal, contanto que me deixassem quieto, também.
Voltando a falar dos peixes que vi no arroio que, à medida que eu descia, alargava-se um pouco mais, eles me deixaram impressionados; não tanto pela beleza, que era comum, embora fossem coloridos, mas pelo tamanho. Isto não é normal em peixes daquela espécie. Meu embasbaque aumentava enquanto eu descia e me aproximava da água. Eram peixes de trinta centímetros ou mais; e eu cheguei a ver alguns que alcançavam um metro de comprimento. E coloridos! Era isto que me impressionava. Toda aquela novidade, no entanto, nada passou a representar quando ganhei a margem da praia.
Devo confessar que, o que vi naquele dia marcante da minha vida mudou para melhor toda a minha carreira de comerciante de peixes. Não conseguia acreditar que me mandariam para um local como aquele se o que mais imperava dentro da cooperativa era a concorrência entre seus próprios membros; e ela chegava a ser desleal e até desumana em alguns aspectos o que já havia gerado desentendimentos e mesmo mortes. Fiquei sabendo mais tarde que errara a ilha para a qual haviam me enviado e, para sorte minha e deste ramo de negócios fui parar nesta que chamei de rica e abençoada.
Pois bem, quando cheguei à margem vi, num raio não inferior a duas léguas marítimas e tomando cada centímetro da água, peixes, muitos peixes; de todos os tamanhos, de todas as espécies que eu conhecia e outras de que nunca fizera ideia nem julgava existir. Eram tantos que se batiam uns contra os outros num frenesi inacreditável, pedindo para serem apanhados. Eu não sabia o que fazer; cheguei a agarrar um ou dois com as minhas próprias mãos. Era só esticá-las e trazê-los; não havia neste gesto a menor dificuldade. Fui correndo para o outro lado em busca do barco.
Retornei costeando a ilha e mal alcancei a área já me vi no meio deles. Eu me curvava para a água e trazia quantos peixes quisesse para dentro do barco. Alguns, em meio a pulos frenéticos e assustadiços, caíam no fundo do barco sem exigir de mim qualquer esforço. Foi assim que consegui uma transformação total em minha vida profissional.
Embora não saiba explicar a razão, acredito que algo além da sorte me tenha levado, e por engano, a um local tão profícuo e abençoado. Por muitos anos a prosperidade vigorou para os membros da minha cooperativa.
Mas foi tanto o desmazelo e tamanha a ganância dos que ali chegavam em massa que o manancial foi rapidamente esgotado; tudo por falta de respeito ao ciclo da natureza que nos dá tudo em abundância se agirmos com equilíbrio e comedimento, o que não aconteceu neste caso. Então podemos dizer que tudo foi bom enquanto durou.