Refúgio urbano

Segunda-feira, uma da manhã. Adela olhou para a rua lá fora através da porta de vidro da livraria. A placa de "aberto" estava pendurada na maçaneta, e era quase certo que alguém iria aparecer para tornar a noite menos solitária. Sempre havia os insones e aqueles desesperados por concluir alguma saga que não poderia esperar pela luz do dia.

Durante o dia, o cruzamento em frente à livraria era movimentado. O tráfego ia caindo depois das 21 h, principalmente num dia de semana como aquele. Também não havia muitos estabelecimentos abertos naquele quarteirão durante a madrugada; uma farmácia aqui, uma barraquinha de cachorro-quente acolá, e a livraria. Livrarias eram estabelecimentos essenciais, deveriam estar abertos 24 horas por dia, sete dias por semana.

A luz vermelha do semáforo acendeu-se, mas não havia nenhum movimento de automóveis. Todavia, do outro lado da rua, um homem usando moletom com capuz atravessou na faixa de pedestres em direção à livraria. Adela ergueu-se detrás do caixa e posicionou-se atrás do balcão, aguardando a chegada do possível cliente. Finalmente, a sineta sobre a porta soou.

- Boa noite - disse o rapaz ao entrar.

- Boa noite, seja bem-vindo - saudou-o Adela.

- Grato - o rapaz aproximou-se do balcão, após lançar um olhar de apreço pelas estantes que exibiam lombadas coloridas. - Talvez você possa me ajudar...

Inclinou-se para ler o crachá que pendia do uniforme dela.

- Adela.

- Alguma obra em especial? - Indagou solícita Adela.

- Preciso de um conselho - admitiu o rapaz. - Me disseram que, se eu ficasse encrencado, poderia conseguir ajuda aqui.

- Se me disser seu nome e o tipo de problema... - redarguiu Adela.

- Florian - apresentou-se o rapaz. - Eu quebrei um círculo... não foi intencional, mas foi o que eu fiz.

Adela balançou gravemente a cabeça.

- Onde aconteceu isso? Numa associação, universidade...

- Foi na universidade. Tinham organizado o círculo de cadeiras num dos pátios, a reunião iria começar à meia-noite. Antes disso, precisei atravessar pelo meio delas para chegar ao meu bloco; tentei deixá-las na mesma posição em que as achei, mas acho que alguém me viu.

Adela balançou gravemente a cabeça. Mesmo não sendo intencional, o gesto certamente traria consequências. O rapaz fizera a coisa certa, vindo procurar auxílio numa livraria.

- Ouça bem, - disse ela - nossa maior dificuldade é que nunca sabemos realmente quem Eles são, mesmo que pareçam perfeitamente mundanos aos nossos olhos. Se você tiver a confirmação, será tarde demais, compreende?

Florian balançou afirmativamente a cabeça.

- É possível que Eles interpretem o seu gesto como uma ofensa, e podem querer lhe punir de acordo com o que achem ser o correto. Mas, se conseguir se esconder pelas próximas 48 h, é provável que esqueçam de você; sempre haverá alguma outra vítima em quem poderão se vingar.

- Vou ter que me esconder dois dias inteiros? - Gemeu o rapaz.

- Não é seguro sair daqui antes do raiar do dia - prosseguiu Adela. - Compre um café e um sanduíche na máquina automática, pegue um livro para ler e tente relaxar. De manhã, não vá para casa. À noite, volte para cá novamente.

Florian balançou a cabeça afirmativamente.

- Está bem. Vou fazer o que sugeriu.

Florian colocou moedas na máquina e pegou um copo de café e um sanduíche. Depois, sentou-se numa das mesinhas de leitura, uma revista de tecnologia nas mãos.

De novo só no balcão, Adela olhou para a rua lá fora, banhada pela luz verde do semáforo. Do outro lado da rua, havia três vultos escuros parados, junto a faixa de pedestres.

Ela sentou-se atrás do caixa; sabia que Eles não ousariam entrar ali.

- [31-07-2021]