A casa do Pai
Quando a noite chegou aos seus velhos olhos e a escuridão faminta avançou por sobre a cidade comendo as praças, as árvores, as ruas e todas as casas; Dona Nadica fechou a porta vida e colocou uma tranca; nunca se sabe o que se esconde depois do por do sol. Uma vez uma jaguatirica invadiu a moradia e o gato Dormindo enfrentou a fera, provando a sua lealdade a quem o alimentava desde filhote.
A mulher estava muito doente, e ela e o gato eram os únicos moradores do casebre; quando os habitantes da vila desapareceram envoltos em densa penumbra e o silêncio invadiu o seu pequeno mundo, a velha rezou e pediu aos céus o perdão pelos poucos pecados cometidos ao longo de sua vida.
Um toc toc na porta chamou a atenção; Dormindo ronronava e Nadica, com dificuldade, notou uma réstia de luz se infiltrando pelas frestas da madeira: - “Meu Bom Jesus! Será uma visagem?”. Corajosa abriu a passagem e ficou apalermada com o que viu em meio a quase cegueira.
Tudo era luz! O jardim de poucas flores mal cuidadas estava maior e o perfume de jasmim se espalhava penetrante; nem lembrou que jamais cultivara tal planta. Na rua totalmente iluminada pela estranha claridade, vultos passavam em alegres bandos. Notou que comadre Jandira levava a menina Anita pela mão. Comadre Jandira? Jandira e Anita morreram de tifo há mais de sessenta anos! Meu Deus!
- Nadica, venha passear! Vamos até a Fonte ouvir o cantar das árvores...
“Estou sonhando!” pensou Nadica... “Árvores cantantes?”
- Não tenha medo! Você atravessou a porta... Olhe para trás!”
Do casebre envolto pelas sombras, o gato Dormindo espiava de olhos arregalados aquele mundaréu de luz; por detrás do gato senil, um corpo caído no chão. Nadica reconheceu o seu velho e cansado corpo... “Eu morri!” pensou.
- Ninguém morre Nadica! O corpo é apenas uma veste e você trocou de roupa... Venha conhecer a sua nova casa... Venha! Menina.
O lugar era lindo; a vila era a mesma, as montanhas, o lagamar, a torre da matriz... Não! Não era a mesma freguesia. As ruas estavam cobertas por prateadas areias, muitos pássaros, muitas árvores frutíferas, flores desconhecidas e pessoas com trajes antigos que pareciam felizes; poucas crianças, nenhum velho.
Nadica correu até o chafariz; “Que belo o antigo chafariz!”, olhou a água clara e notou a sua imagem refletida, era agora uma jovem de quinze anos; a adolescente que há noventa anos partira daquele mesmo lugar para uma pequena viagem e entendeu: - “Cada existência é um passeio, um fim de semana na Terra. A vida é eterna e muitas vezes mudamos de casa; voltei ao meu primeiro lar.”
Na habitação simples e de poucos moveis as janelas estavam todas abertas, no pomar de muitas frutas pássaros cantavam e do jardim chegava o perfume das flores... O filhote entrou satisfeito e espiou pelos cantos; aprovou a nova morada... Pulou no colo de Nadica pedindo carinho; “Dormindo, você também voltou!”. Todos voltam à casa do Pai.
Gastão Ferreira/Iguape