Maria do necrotério
Entra defunto e sai defunto Maria cuida com dedicação. Se for preciso cola a boca com super bonder, passa batom e até pinta as unhas da defunta vaidosa.
Já precisou costurar olho de gente, fazer escovinha, pentear o bigode de gente morta, pra ela tanto faz tanto fez, ela até se sente mal se não mandar pra sepultura a pessoa bem arrumadinha, apresentável pra família.
Maria do necrotério não tira folga, tem medo de não fazer seu serviço e ser cobrada por quem já morreu. Inventou de folgar um feriado e não deu certo, na madrugada sonhou com um homem puxando seu pé e pedindo: “Me arruma, Maria, penteia meu cabelo.” Nunca mais faltou, ficou obcecada pelo trabalho.
Lava o sovaco, a genitália, o pescoço, a cara da pessoa, dá um banho caprichado, acha bonito quando levam um terno pra usar no defunto, “isso sim é que é consideração!” Uma vez o defunto foi enterrado de palhaço, ela já viu de tudo, gente que leva roupa de bailarina, de presidiário e até de foca.
Maria não folga, Maria não cuida de gente viva, só de gente morta. Ela é quase uma morta-viva, tão cansada ela anda! Mas ela não pode ter cansaço, as pessoas nunca param de morrer, todo dia morre um, dois, já precisou arrumar mais de dez, defunto é o que não falta no mundo!
E se Maria resolve morrer, Santo Deus (!), o que será dela? Será que vão saber escolher seu vestido pra enterrarem com toda pompa que ela merece? Ela sonha encontrar São Pedro de véu e grinalda, batom cor de rosa e flor no cabelo. Nunca se casou e nem pretende, está destinada ao santo porteiro, quer ser a noiva dele no céu, mas pra isso precisa que alguém cuide dela no funeral, que atenda ao seu capricho de noiva de santo pra chegar bem nas paragens eternas. Será que alguém faria isso por ela?
Ah, Maria! Deixe tudo aprontado. Seu noivo lhe espera de vestido ou mortalha, você venceu a batalha da vida, e enfrentou o desafio de dar dignidade a quem parte e não tem força de se levantar e se vestir sozinho.
Você dá sentido à morte, mas na morte talvez sua vida lhe faça algum sentido. Então, a Maria do necrotério escolhe o dia certo para encontrar São Pedro. Acorda cedo, toma seu banho, se arruma de noiva. Não aparece no trabalho e sabe que sua ausência demandará gente que a busque de pronto. Quando chegam para saber de Maria já a encontram deitada no caixão arrumada para um casamento no céu, mas seu vestido agora é vermelho, o caixão está ensopado dos pulsos riscados pela gilete velha. Maria cuidou de tudo, até das coroas de flores, o velório está montado, mas não sabia que tinha tanto sangue para verter de um corte tão pequeno.
Maria é a noiva mais estranha da cidade e a defunta mais sórdida de que se tem notícia.
Do livro: Como morrem as Marias de Cyntia Pinheiro