Depois do Natal: Um conto para não ser lido à noite (cap XI - O MOTIVO DA SUSPEITA)
O motivo das suspeitas recaírem sobre o sapateiro era sua história de vida.
Nascera e crescera ali, naquela pacata cidadezinha.
Todos conheceram seus pais. Lembravam-se de sua mãe. De como sua mãe o tratava.
Claro que ele andou levando algumas palmadas e outras cintadas, como toda criança traquina que se excedia. Mas quem fazia isso, eventualmente, era o pai. O pai, senhor adoentado, sapateiro de profissão que herdada do pai, que herdara do avô, vivia enclausurado na humilde oficina, nos fundos da casa. Por essa razão somente vez por outra é que dava uns xingões e umas cintadas no filho.
Mas a mãe não.
Cada vez que o carcomido pai se aventurava em dar uma reprimenda no filho a mãe se colocava na defesa do filho único. Defendia o filho como quem defende a própria vida.
Assim o menino cresceu. Acossado pelo pai e superprotegido pela mãe.
Muitos ainda se lembravam do episódio em que o menino – hoje sapateiro – fora trazido para casa na viatura policial. Fora apanhado, juntamente com outros meninos, atirando pedras na vitrine de uma loja.
O vidro se estilhaçou todo. E alguns deles, ninguém sabe quais, aproveitaram para apanhar alguns objetos na vitrine quebrada. Coisa de pouco valor, que não foi recuperada, pois na fuga, os vândalos larápios atiraram fora o produto do furto.
Não fora, a rigor, um roubo, mas uma das tantas peraltices de menino desocupado. Nada que não se curasse com o tempo e alguns cabelos brancos a mais na cabeças dos país.
Nesse caso, todos os meninos foram detidos e conduzidos aos respectivos pais. Cada pai, ali mesmo na frente dos policiais, dera umas boas lambadas nos filhos e se comprometeram a pagar o estrago.
O velhote sapateiro, pai do sapateiro, tentara fazer o mesmo. Mas a fúria matriarcal o impedira.
Mais do que isso. Escorraçou os policiais de sua porta.
Os anos se passaram e o menino, na medida que crescia, fazia umas loucuras aqui, outras acolá. Todas relevadas pela sociedade local visto que, meninos e moços levados sempre houvera e não seria esse o último.
“Quando crescer aprende a ser responsável”, diziam as pessoas que ficavam sabendo de suas diabruras, que, é bom que se diga, sempre foram cometidas juntamente com outros meninos e rapazes que, com o transcorrer do tempo, foram se casando, formando família, e vendo seus filhos repetindo suas artes de crianças, de jovens…
A bem da verdade, é bom que se diga, algumas dessas crianças, já adolescentes, entrara para o mundo do crime. Também é verdade que uma ou duas dessas que ganharam o mundo, foram por ele engolidas. Sabe-se de um ou outro que teve fim violento…
Mas tudo isso era visto como fazendo parte de uma vida normal. Como são normais os acidentes e tropeços e vitórias e felicidades ao lado dos momentos de dissabores.
Uma única vez a mãe do sapateiro fugira a essa regra. Muitos falavam, inclusive, que fora por causa desse episódio que a sua mãe passara a lhe superproteger.
Ocorrera quando o menino era bem menino. Na pré-escola!
Um grupo de meninos fora visto levantando a saia das menininhas, na escolinha infantil que funcionava perto da casa em que vivia a mãe, o filho e o velho sapateiro.
Talvez por desavenças antigas a senhora, dona da escola, que também era professora, aposentada, por cima do muro que dividia o pátio da escola e a casa-sapataria, chamou a mãe do menino:
- Olha o que seu filho anda aprontando. Desta vez foi longe demais. Tentou se aproveitar da filha da mulher do padeiro. A mais nova que estuda aqui.
- Tentou se aproveitar como? – quis saber a mãe.
- Olha, o tarado levantou a saínha dela, e você sabe de quê esses meninos são capazes, hoje em dia...
- Mas eles são só crianças. Não têm maldade... não são maliciosos como os adultos... é só curiosidade de criança...
- Mas e bom a senhora dar um jeito.
E professora falava isso enquanto mantinha o menino agarrado pelo braço.
Depois de algum tempo de conversa, agora mais irritada, a professora se valeu de um artifício. A ameaça. E dirigiu-se à roda de crianças que se divertia assistindo a discussão das duas adultas que discutiam feito crianças.
- Não foi este pestinha que fez isso? Perguntou a professora, com um olhar ameaçador, para as crianças.
A mãe, nessas alturas, já irritada com a acusação, viu as crianças balançando a cabeça, confirmando a acusação da tia. Via isso e via seu filho chorando, quase que pendurado pelo braço, na mão da professora que, quanto mais falava, mas se exaltava.
O menino, sem entender nada, só chorava. Na verdade sentia-se apavorado, pela dor do braço apertado na mão da professora, pelos gritos da discussão das duas mulheres, pelo medo do que estava acontecendo. E por não entender o motivo das duas adultas estarem falando tão alto.
- Me dá meu filho aqui – falou a mãe, se projetando sobre o muro, que não era tão alto, arrastando o filho pelo braço, resgatando-o da professora.
A força do gesto foi tão forte que a criança caiu sobre o muro. A batida feriu seriamente os genitais da criança… que, agora sim, chorou e gritou desesperadamente, com o sangue a escorrer por entre suas pernas...
Com o filho nos braços, dirigindo-se desesperada para o posto der saúde, a mãe prometia em pensamento, nunca mais maltratar o filho.
Dias depois tudo voltou ao normal.
O menino convalescia, envergonhado com aquelas ataduras por entre as pernas.
A professora acabara descobrindo – pois a menina que fora vítima falara a outra professora mais amigável – que o menino, filho do velho sapateiro, não havia feito nada e quem havia levantado a saia da menina – filha do padeiro – havia sido o filho da professora.
Mas o tempo passou.
Todas aquelas crianças cresceram.
E o filho do velho sapateiro, herdou, além da casa, a profissão do pai.
(Continua na próxima semana...)
Neri de Paula Carneiro
Rolim de Moura – RO
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