Outros Dias
Aquele dia veio diferente. Havia um sol brilhante que, ouviu dizer, já estava alto quando acordou. Há muito tempo que tinha vontade de ver nascer a luz mas, no tempo certo, ainda nem se sabia fora dos sonhos que ficavam até ao último instante a tecer coerentes absurdos. Hoje, a história onírica levava-o a ser de outro mundo. Ainda sentia a gola cheia de favos de renda, a rigidez do brocado lavrado em tons quentes, os calções tufados sobre meias justas que lhe vinham, não sabia como, da zona alta das coxas. Era do século dezasseis e fazia versos rimados a uma mesa de tampo liso e pernas arredondadas. O tinteiro era de cristal e a pena de pato, aparada para caligrafar elegâncias se a tinta corresse, se as palavras viessem, se ele, que de si só recordava ser poeta, aprendesse o caminho das musas que nunca pôde ver. – Hoje não recebo ninguém, fez saber. - Mas é importante que receba, que lhe ofereça o melhor da sua cultura, que lhe fale do Olimpo onde os destinos da pátria que escreveu se teciam com Júpiter a tiranizar o resto dos deuses. Vem sábio mas mal vestido. Há gente que nem precisa de coche dourado e camisa de cambraia para ser notável. Este vem cego de um olho, parte que, ausente, o faz ver o mundo com maior dificuldade. Vem como velho mas, sabe-se, há muito vigor no que faz, muita certeza no que diz. Luís Vaz de Camões referiu como nome e acrescentou que Vossa Excelência só o saberia da obra que andava já na boca de todos os ilustres. Hoje, disse, não estava para ninguém mas, receberei o Luís, faça o favor de o mandar entrar. E ainda a porta pela mão do lacaio se abria quando, sem mais conhecimentos nem razões, acabou o sonho que lhe deixava, pasme-se, um leve odor a pergaminhos.