Noivado

Não se recordava de estar doente. Diziam os familiares que delirava com a febre e que tinha visões. Depois, ficava bem e voltava tudo ao normal. Passava a tomar conta da lida da casa, bordava o enxoval, saía em curtos passeios pelo parque. Quando já de todo se esquecia do mal, fraquejavam-lhe as pernas, era obrigada a sentar-se e a fechar os olhos e via-o, nitidamente, a sair de trás do reposteiro com os cartões das letras. Mostrava a letra e ela, a tremer sem saber porque o temia, arranjava a palavra cujo começo correspondesse à letra mostrada e dizia alto para ele ouvir. A de Aveiro, B de Buarcos, C de Coimbra. E ele, sem se mexer nem falar, dizia-lhe: - não tens pernas para ir lá e mostrava-lhe outras, como o X de Xabregas, o T de Tabuaço. Daquela vez experimentou não acertar de propósito e, ainda que aterrorizada, ao ser-lhe mostrado um P disse Espanha, ao ler um F pronunciou camaleão. E o homem dos cartões com letras ia perdendo pedaços com alguma indiferença e sem dor. A mão esquerda, a perna, uma orelha e quando ela se compadeceu dele, amedrontada com a hipótese de o fazer perder a cabeça, voltou a dizer certas outras palavras. Leu no A amor, no B Bonifácio, no C casamento e, só depois, viu desaparecer o homem a coxear e a deitar fora os cartões com as letras. Acordou era dia. Sentia-se bem, devia ter sonhado a fraqueza que precedia o homem misterioso e decidiu que nunca mais responderia aos cartões de ninguém. Quando chegou enfim o jantar do pedido com o Bonifácio a esconder a caixa do anel de noivado e a rosa vermelha que trazia, a mãe, mais excitada que ela, fez-lhe sinais que não entendeu e a senhora, em desespero de causa, escreveu num guardanapo um A de todo o tamanho e ela, prontamente, percebeu: anel.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 28/03/2021
Código do texto: T7217993
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