A vida no mel do tempo
O fio silencioso de lágrima sem porquê era um presságio: algo incomum estava prestes a acontecer. Enquanto dirigia, Débora pensava em números: filha de 19 anos, faculdade de 2.438 reais, cinco escolas que lecionava, quatro anos de sua própria faculdade, três de mestrado, 60 horas-aula, cinco anos separada, 47 anos de idade.
Mas não era em números que queria pensar. Desconfiava que a racionalidade dos números era apenas fuga. Números não fazem chorar. Havia um vazio gigante, um enorme buraco em sua vida, resultante da fome voraz do tempo. “O tempo devora minha vida”, lamentou-se em pensamento.
Já perto do condomínio, Débora se lembrou da pergunta que Thomás, um curioso garoto da terceira série do fundamental, fizera-lhe na manhã daquele dia.
- Profe, as abelhas fazem mel para elas e para as filhas delas? – quis saber o menino.
– Sim, Thomás. Isso mesmo – respondeu.
- Deve ser um tempo feliz o tempo de fazer o mel.
- Por quê?
- Porque o mel é a vida delas, o alimento delas e das filhas.
- É, acho que você tem razão.
– Mas, profe, elas sabem que o mel é pra elas? Elas sabem disso?
– Bem, elas agem por instinto. Não precisam saber.
– Isso é triste – concluiu o menino.
Débora, por fim, chegou ao condomínio. Desceu do carro sem sair de si mesma.
Por eternos cinco segundos, Gilmar, o porteiro, ficou com o braço estendido tentando entregar à professora um envelope amarelecido pelo tempo e lacrado com um lacinho azul. Ela nada via, pois seus olhos, molhados, ausentaram-se dentro dela.
- A senhora tá bem, dona Débora?
- Sim. Obrigada – respondeu, voltando ao mundo. – Só tô cansada, seu Gilmar. Não vejo a hora de me aposentar, sabe, pra poder dedicar mais tempo pra mim e pra Bia.
- Claro, eu entendo. Sei bem o que é isso.
E Gilmar sabia mesmo, pois só veria a família na manhã seguinte.
- Que é isso? – perguntou, notando, finalmente, o envelope na mão do porteiro.
- Não sei. Pouco depois que comecei meu expediente, uma menininha, de sete ou oito anos mais ou menos, me entregou esse envelope e foi embora. Apenas disse: “É pra professora Débora. Entrega, por favor.” Quando eu ia perguntar quem tinha enviado, a garota já tava longe e logo desapareceu.
- Não tem remetente – estranhou enquanto examinava o envelope. – Mas tá bom, seu Gilmar, vou subir. Tô morta de cansaço.
Débora entrou em silêncio no apartamento para não acordar Beatrice. Foi ao quarto da filha, contemplou-a dormindo. Sentiu-se leve apesar do cansaço. A rotina entedia, mas conforta.
Durante o banho, renasceu com a água. As pernas, as cordas vocais, os braços, cada parte de seu corpo foram se recompondo em um todo. Cada gota lhe molhava pedacinhos de vida.
Após fazer escorrer pelo ralo o dia de cansaço, a professora, momentaneamente renovada, procurou algo para comer na geladeira. Sentou-se. Na mesa, uma fatia de bolo de chocolate e o misterioso envelope. Respirou a paz do tempo e se sentiu viva no sabor do chocolate. Sorriu por existir. Abriu o envelope. A letrinha infantil parecia de outra vida, de familiaridade do passado.
“O que é o tempo? Não é você? Não é agora? Não é a noite muda e um bolo de chocolate?”
- O que é isso? – assustou-se Débora. “Quem teria me enviado isso?” – pensou sem fazer a mínima ideia do remetente. “Quem seria a tal menina que deixou este envelope? Por que ela faria isso? Quem a teria mandado?” Retomou a leitura.
“Acredita mesmo que o tempo devora nossa vida como devoramos o mel das abelhas? Você, Devorah, não seria a própria devoradora do mel da sua vida?”
Um tsunami expulsou o lago que havia serenado as ideias de Débora após o banho. Tentou decifrar o mistério. “Eu conheço esta letra” – pensou. Imaginou ser de algum aluno. Agitou-se nos movimentos das ondas de sua alma. Bolhas explodiam na quentura do pensamento: carta, menina, Thomás, Beatrice, abelha, mel, o seu nome. Sabia que Débora, do hebraico “devorah”, significa “abelha”.
- Abelha, abelha, abelha... – sussurrou, na procura de lógica.
Desceu à portaria.
- Seu Gilmar, seu Gilmar!
- Dona Débora, achei que a senhora já estivesse dormindo.
- De que jeito? – perguntou angustiada mostrando a carta em suas mãos.
- Posso ajudar de alguma forma?
- Todo mundo que chega aqui é filmado, né?
- Sim.
- Será que eu consigo... Ah, acho que não dá, né?...
- Entendi. A senhora quer ver a imagem da menina que entregou o envelope... Sinto muito, dona Débora. Em primeiro lugar, eu nem tenho acesso às câmeras. Depois, isso é complicado, burocrático, tem que pedir pro síndico e coisa e tal...
- Ai, eu sei, seu Gilmar, eu sei. É que eu tô meio confusa... A carta é muito estranha...
Após uma mudez de reflexão, ela sugeriu uma alternativa:
- Por acaso, o senhor pode descrever essa menina com o máximo de detalhe?
- Acho que sim.
O porteiro se esforçou para pinçar pormenores da memória. Focou na menina e se lembrou de seus cabelos, da cor da pele, dos olhos, do jeito de falar, do vestido azul coberto de flores rosas e com a gola branca e com rendas, um tipo antigo de moda.
Débora quase entrou nos pensamentos de Gilmar para ver a menina. No entanto, conseguia enxergar apenas a si mesma. Foi voltando no tempo e se vendo criança. Tinha os mesmos olhos, pele, cabelos, jeito de falar descritos pelo porteiro. E aquele vestido? A imagem descrita era idêntica... O vestido se desenhava em suas lembranças.
Voltou, eufórica, ao apartamento. Revirou a gaveta em busca de um antigo álbum.
- Achei! – vibrou.
Visitou seu passado em cada foto. Chorou ao encontrar o que procurava. Na foto, Débora tinha sete anos. A menina da imagem usava o vestido, o fantasmagórico vestido: azul, flores rosas, gola branca com rendas. Débora se congelou de corpo e alma. Sentiu-se parada no tempo. Olhou, de novo, a carta. “Minha letra!” – espantou-se. Olhou, demoradamente, a foto. A menina segurava algo. Fixou a máxima atenção e percebeu que a criança da foto segurava um envelope com lacinho azul. "Estranho, não lembro de ter tirado essa foto segurando um envelope!" - pensou, duvidando do próprio pensamento.
Fechou os olhos e viu a si mesma em algum lugar de sua infância escrevendo uma carta. A menina de sua memória, feito um espectro, parou os olhos nos olhos da Débora adulta. As duas dissiparam o tempo, apagaram 40 anos, e se reencontraram.
Débora abriu os olhos, caminhou pelo apartamento, foi ao quarto da filha e sentiu o coração sorrir. Entrou no próprio quarto e, antes de dormir, olhou-se no espelho. Estava convicta. Sentia a vida perecer lentamente, sem pressa, no mel do tempo, no tempo do mel.
- Eu sou o agora. Eu sou meu tempo. Obrigada – agradeceu à menina que escapou de suas lembranças para sorrir no espelho.
Aos poucos, a imagem espelhada ganhou idades e Débora notou o tempo, seu próprio tempo, nas marcas de seu rosto. Sentiu-se feliz por ter o tempo, por ser o tempo, por ser o presente, o seu presente.