Depois do Natal: Um conto para não ser lido à noite (cap III – VISITA À CACHOEIRA)

O primeiro caso não teve quase nada de especial.

O casal e as crianças, levados por um velho guia, visitavam uma cachoeira do rio que dá nome àquela cidadezinha interiorana.

Pela paisagem mágica o lugar lembrava as cataratas de Sete Quedas que a barragem do progresso inundou, anos atrás.

Pontes feitas de pequenos pedaços de tábuas, presas por um grosso cabo de aço, permitem que os turistas atravessem, com toda segurança um pequeno vão de águas revoltas.

Lá em baixo, sim, há perigo, mas não sobre a passarela, bem feita, bem preservada, bem conservada.

Entretanto, todos sabiam: uma queda ali era morte certa.

Muitos, aliás, já haviam desaparecido nas águas claras que espumam as rochas de um preto esverdeado pelo limo, liso! O movimento circular das águas, dizem alguns, é um liquidificador montado pela natureza. Alguns dos que ali morreram foram encontrado mais abaixo, triturados entre as pedras.

Mas isso em outros tempos, não nestes, modernos, em que a prefeitura descobriu no riacho uma fonte de renda maior do que os impostos pagos pelos comerciantes sonegadores.

Os quatro, juntamente com o velho guia, naquela manhã, de um chuvisqueiro abafado pelo calor, passeavam pelas trilhas da floresta que um grupo de ecologistas conseguiu preservar, nos cílios do rio.

Lugar lindo! Lembra paisagem de cartão postal!

O lugar, verdadeiramente maravilhoso não fosse o perigo da ponte e do precipício sobre o rio, estava propício àquela aventura: um misto de passeio na floresta, com direito a acampamento e churrasco, assado numa das várias churrasqueiras que a prefeitura mandou construir às margens do rio e da trilha planejada com o objetivo de atrair turistas e veranistas. Gente que paga caro para desfrutar da natureza.

Tudo dentro da maior civilidade e cuidado ambiental, que faz corar um ecologista europeu.

O incidente aconteceu já no finalzinho da expedição, quando se preparavam para voltar ao hotel.

Haviam decidido que durante todo o período de férias, neste ano, sempre se hospedariam em hotéis. Para evitar sustos como o que aconteceu no ano passado: dormiam numa barraca na beira de um outro rio, numa outra região do país, quando uma cobra se alojou, enrodilhada, sobre a barriga da menina, que dormia à porta da barraca.

Depois dos gritos e em meio ao desespero de todos, a cobra conseguiu desaparecer no meio de uns arbustos, ao lado da barraca.

Salvou-se!

Mas neste dia, à tardinha, voltavam para o hotel.

O velho guia, já cansado, alertava para os perigos da beira do rio.

Aprontando-se para o retorno, o pai vai até a margem do rio pegar uma garrafa descartável de refrigerante que derrubara acidentalmente.

Thibum!

Nem deu tempo de gritar. A voracidade das águas do rio estava já devorando o homem.

De repente um de seus braços se agarra em um galho, pendido sobre o rio.

Foi a salvação.

Mas não definitiva, pois antes de ser socorrido afundou diversas vezes. Bebeu uns tantos goles d’água, limpa e cristalina, é bom que se diga. Naquele recanto ecológico, por incrível que pareça, a água do riacho ainda corria cristalina... mas só antes de passar pela cidade, pois ali recebia todos os tipos de esgoto e sujeira que se pode imaginar que a civilização atira nos rios de águas limpas.

As forças lhe faltaram e ele afundou novamente, desaparecendo...

Reapareceu mais abaixo, agarrado em arbusto, braço salvador que a natureza havia plantado na beira do rio, que nesse ponto era um remanso, contrastando com o burburinho das águas da cachoeira furiosa, ao lado e acima, do onde ele veio, arrastado entre pedras e jatos d’água esborrifado por entre as pedras.

Salvou-se graças ao esforço concentrado dos filhos, da esposa... e do velho guia, ofegante que por ironia do destino caiu nas águas mansas.

Afundou, provavelmente com cãibra devido ao cansaço.

Em vez do turista descudado, morreu o velho guia...

Continua na próxima semana

Neri de Paula Carneiro

Rolim de Moura – RO

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