1155-O INFERNO NÃO EXISTE

O INFERNO NÃO EXISTE

— Deixa de ser besta, Conrado. Inferno, céu, purgatório, isto tudo é invenção dos padres. Nada disso existe.

— Mas Fernand, tem que ter algum lugar prá gente viver melhor do que essa merda de vida aqui. Ou prá quem é mau pagar suas maldades que faz aqui.

— Besteira. Não existe prova nenhuma. Você conhece ou há ouviu falar de alguém que já esteve no céu ou no inferno e voltou para contar?

— Não, mas...

— Então, não há provas. É tudo invenção.

— Também não há provas de que não existe!

— Mas como provar que não tem nada depois da morte? Não há nada, pronto, não há como provar.

A discussão entre Fernand Ernest e Conrado Piedade acontecia sempre que os dois se encontravam. Eram amigos de há muito, frequentavam o Clube Central todas as tardes na mesa do carteado e mantinham a amizade mesmo apesar da divergência de opiniões. Nunca chegaram a uma conclusão, mas nem por isso deixavam de se confrontar na conversa e nos lances do baralho.

O personagem predileto para as invectivas de Ernest era o demônio, capeta ou quanto nomes forem atribuídos ao coisa-ruim.

— O diabo é a maior besteira inventada. Atribuem a ele todas as maldades dos homes e mulheres, como se fosse o culpado de todo o malfeito no mundo. — E seguiam tantas afirmações sobre o demônio que não atrevo a transcrever aqui para não assustar os leitores.

Não tinha hora nem lugar para suas diatribes.

Até que um dia encontrou uma pessoa que concordou com ele. Estava saindo do clube, alta madrugada, contente por ter ganho naquela noite valores elevados, graças aos seus recursos de jogo não ortodoxos, quando foi abordado por um homem elegante, debaixo da marquise bem iluminada do edifício.

— Senhor Fernand Ernest! Até que enfim o encontrei!

Surpreso e cauteloso, Fernand se afastou um pouco e levou a mão direita ao bolso interno do paletó.

— Quem é o senhor? E como me conhece?

— Ando à sua procura há tempos.

Estendendo a mão direita, que Fernand ignorou, mantendo a sua no bolso do paletó, segurando a arma.

— Ah, sim, deixe-me apresentar-me. Meu nome é Luiz Cifer, sou professor universitário e estudo demonologia. Como o senhor, cheguei à conclusão de que o demo não existe, nem nada que é apregoado sobre céu, inferno, limbo, purgatório, essas bobagens todas.

Ainda desconfiado, mas já se identificando com o estranho, cuja aparência simpática, elegância e porte altivos, um olhar forte, e um suave perfume masculino amadeirado já o estavam cativando.

— E me procurava... não entendo.

— Mas é claro! O senhor não sabe, mas sua fama já chegou bem longe.

— Fama? Não sei do que o senhor está falando.

— Senhor, não, por favor. Luiz Cifer, mas chame apenas de Luiz.

— Pois como está me perseguindo e me encontrou, o que quer de mim?

— Sua fama de verdadeiramente não acreditar que nada existe após a morte, “do outro lado”, como dizem alguns, sua fama, repito, chegou até nós. E, acredite ou não, é o único homem que acredita verdadeiramente nisto, pois dos milhares de indivíduos que nossa universidade já teve conhecimento, o senhor é o único autêntico, sim, autêntico em sua crença. E por isso estou aqui.

— Com assim. Eu não acredito e pronto!

— Mas por diversas vezes foi desafiado a provar o que não existe, não é mesmo?

— Sim, acontece que não há o que provar.

— Pois venho lhe convidar a uma caminhada que lhe fornecerá a PROVA para sua crença. Ou melhor, descrença!

— Mas ... agora? Acabei de sair do clube e estou indo prá casa. Minha mulher...

— Ora, meu caro Ernest – disse o estranho Luiz Cifer, segurando firme em seu braço. — Ela está dormindo e pouco se dará se você chegar meia hora mais tarde.

Ernest sentiu algo estranho, como se uma energia diferente ou uma onda de calor lhe percorresse o corpo quando Luiz Cifer apertou seu braço. Disse, sem pensar, apenas concordando.

— Sim, vamos lá. Quero mesmo ver o que você tem prá me mostrar... ou nada para mês mostrar.

Tirou a mão do bolso interno do paletó, onde segurava um pequeno revólver, e se dispôs a acompanhar o elegante e convincente professor.

Parecia que o recém-chegado conhecia a cidade e os arredores, pois foram cortando caminho por ruas e travessas até que atingiram o limite urbano. Uma estrada de terra estendia-se desenrolando pelos campos, iluminada parcamente por uma lua crescente. O elegante companheiro agora se tornara mudo, nada falava. Ernest sabia que aquela estrada entraria pela mata dos Borboremas, e chegaria até a cachoeira Branca de Neve, onde nos tempos de rapaz Ernest ia com amigos e amiguinhas, passear e nadar.

Em chegando à cascata, Luiz Cifer subiu por algumas pedras que constituíam um caminho por trás da cortina de água. Estendeu a mão para Ernest e ambos pisaram firme no chão de uma gruta ou caverna. Iluminada na boca pelos reflexos da água que despencava em ruido ensurdecedor. O chão seco e liso, parecia ter sido pisoteado pelo trânsito de muitas pessoas ou animais.

Seguiu o professor, observando que a caverna estava seca e havia uma leve luminescência, que não conseguiu descobrir de onde vinha.

Luiz Cifer então falou:

— No fim da caverna já é o “outro lado”, onde o senhor acredita que não há nada. Vamos, mais alguns passos e o senhor terá a prova. Não se assuste com o calor, é próprio da energia em alta vibração.

Realmente, o calor aumentava a cada passo. Ernest sentia o suor escorrendo pelo rosto e por todo o corpo. Quase que insuportável. Olhou para Luiz que, sem demostrar que sentia calor e em passos elegantes, caminhava firmemente pelo chão batido, plaino e seco.

Enfim, Luiz, que ia à frente, parou no que parecia ser a boca da caverna, a qual terminava repentinamente. Ernest pôs as mãos sobre os olhos, a fim de protegê-los do estranho clarão, de uma luz que emanava por toda a extensão que a vista divisava. Só luz, nada mais. O calor cessara instantaneamente. E um silêncio total.

— Veja, Ernest, não há nada. NADA mesmo. Só energia. Luz.

Agarrando a mão de Ernest, convidou:

— Venha, vamos mergulhar neste NADA.

Ernest sentiu-se puxado e flutuou naquela luz. A mão de Luiz o largou e ele foi descendo, descendo. O calor voltando, crescendo e crescendo. Ernest quis voltar e procurou por Luiz. Não viu ninguém. A medida em que flutuava e descia, o calor ia se tornando insuportável. E Ernest foi divisando o que parecia chamas. Fogo. E descia, cada vez mais, mergulhando no calor e nas chamas. Gritou, mas seu grito não saiu da garganta. E ouviu gargalhadas sinistras.

Num lapso de consciência, soube:

ISTO AQUI É... O INFERNO!!!

..........

Até hoje, passados tantos e tanto anos, o sumiço de Fernand Ernest continua sendo um mistério na pequena cidade de Vento Leve.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Conto # 1155 da Série INFINITAS HISTÓRIAS

Sitio Estrela, Sopé da Serra da Moeda, em 10.03.2021.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 13/03/2021
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