A mala de Nego Valdelino







“Aos olhos da saudade,como o mundo é pequeno...” (Baudelaire)



Armênio contemplou aquele ambiente que lhe fora tão caro em sua infância, ouvia ao longe,as crianças cantando as cantigas da cozinha da Casa Grande...

“Cuidado nego tinhoso,com a boca do sapo!”
Corre pra tua palhoça,que o cururu vem ai.
“Não tarda qu’a correia do Juca Mulato!”
“ Toma chá de mulungu prá dor não sentir.”
..

A lembrança de nego Valdelino veio como “tristeza sorrindo” e tudo que fizera até aquele momento,parecia pequeno,sem o mínimo sentido existencial.
O abraço de D.Celeste ,neta de mucama parideira,ama do melhor leite para o filho do dono do engenho,levou o estudante de Medicina ao tempo d’infância.
Armênio indagou sobre nego Valdelino ,no que levantando os ombros,torcendo o nariz,a cozinheira respondeu:”Aquele velho não toma jeito,deve estar lá pras bandas do ninhal do rio!"
A cama escura de jacarandá,o guarda roupas ,tudo estava no mesmo lugar.Bem no canto do quarto estava a mala de couro de Nego Valdelino,sem brilho,rota pelo tempo.Armênio ,não se conteve e abriu, lentamente,permitindo rever as ferramentas rústicas:Martelo,serras,formão,umas peças arredondadas,torneadas,polidas cuja função ele ignorava.Bem no canto oposto estava a cadeirinha que Nego Valdelino construiu para o menino e junto dela,o baú de brinquedos. A emoção foi incontrolável ao pegar o carrinho feito com a casca do velho carvalho.A madeira não fora atacada pelo tempo,as partes amarradas com fios grossos de couro estavam intactas,as rodinhas perfeitas moviam,graciosamente,o tosco brinquedo ...
Contrastava com a curta duração daqueles modernos da cidade grande que eram ,rapidamente, descartados.Por certo,aquele carrinho construído com a casca do velho carvalho existiria para sempre!
Armênio encontrou Nego Valdelino sentado à beira do rio,absorto,pensativo.Envelhecera os mesmos 23 anos que ele,porèm,era o mesmo ,contudo,o  olhar de Armenio para com ele percebera que tornara-se translúcido,espectral,quase permitindo ver o que se encontrava por detrás dele.Realmente,o ancião possuía uma eternidade “para trás“...
Sorrindo com sorriso de lua minguante e” olhar de chuva”,abraçando o jovem acadêmico,indagou;”Você é feliz meu filho?”
Armênio,segurando,a angústia,respondeu:”Seria mais feliz sendo um simples sapateiro!Quando criança,permanecia horas à fio,vendo-o fabricar as botas do roçal que meu pai e meu tio usavam.Sua tesoura deslizava sobre o couro,vencendo os obstáculos de suas fibras,as agulhas com os fios faziam uma dança ondulante que mereciam a musicalidade de uma Pavana de Fauré,mas,pensando bem,o som da passarada irrequieta,o silvo dos insetos,o ruído do vento sobre as folhas sintetizavam-se numa pastoral sinfonia,onde cada compasso era marcado pelo martelo do Nego Valdelino à cravar as taxinhas na sola do calçado.Valdelino,alegremente,com sua voz grave,solfejava uma melodia que lembrava a caminhada dos escravos exaustos ao final da tarde.
Armênio confessou sua incerteza e temia pela frustração de seu pai que via no futuro médico,um cidadão importante,rico e influente...
“Valdelino ensina-me a ser sapateiro!”
Voltando para casa,o velho abriu a sua mala com carinho e pegando um pedaço de couro pouco curtido,falou:
“Meu filho,este couro que coloco em suas mãos,é a alma de seu paciente”com a diferença que dela exala aroma de madressilva...” O teu bisturi é como a minha tesoura,mas,seu corte é mais suave se for feito com ternura.Derrama suas lágrimas em dobro ante o sofrimento,ofereça cada ato ao Maravilhoso..."
Saiba,meu filho que minhas mãos são conduzidas cuidadosamente em meu mister e no final,reverencio com gratidão,pela construção de mais um calçado.
As palavras do sábio Valdelino provocaram uma onda de felicidade ao jovem estudante que não percebera que havia concluído a confecção de um calçado.Por longos minutos ficou à admirar a perfeição de seu trabalho.
Nego Valdelino fechou a velha mala e deixou Armênio com seus dois tesouros;O carrinho de casca de carvalho e o sapato novo...