A Herança de Orum
Era um povo muito antigo, e talvez berço de toda a civilização conhecida. Os mais velhos contavam que foram extraídos de uma lasca do corpo de Orum, forjados no fogo do estalar de seus dedos, e cozidos no sopro do ar quente de suas narinas. A intensidade das labaredas fortaleceu sua estrutura e revestiu o tom de suas peles com a cor da noite. Eram guerreiros com o poder de se ocultar na escuridão trazendo as maiores e melhores caças, de onde aproveitavam tudo, inclusive de seus espíritos.
Não tinham escrituras, apenas alguns desenhos e encantamentos. Tanto a cultura quanto a magia eram passadas por sussurros ao pé do ouvido nas rodas de conversa debaixo do manto estrelado pousado nas costas de Orum. Porém, de alguma forma o irritaram. Um dia, o vento decidiu não soprar seu frescor e o calor foi insuportável. A claridade que antes cobria suas cabeças durante o dia e pontilhava a escuridão com diamantes a noite, de repente, ficou escura como um carvão esquecido no fogareiro. Orum cuspiu flechas que explodiram no breu e o céu ficou líquido, pois muitas águas saíram de seus olhos abrindo feridas na terra seca, como uma grande garganta pronta a engoli-los sem mastigar. Mas isso foi a muito tempo atrás.
As circunstâncias exigiram que os sábios os conduzissem a uma diáspora que perdurou por semanas e estas viraram anos. Sem saber ao certo para onde, e cada vez mais longe de seu lugar, foram de encontro a uma poça enorme de água salgada, tão grande que não dava para enxergar seu fim. Os fortes sustentaram balças sobre suas cabeças, mas pouco a pouco foram engolidos. Seu passado, suas raízes, suas vidas... Quase tudo foi perdido.
Os mais velhos esconderam a cultura em meio a canções sobre aqueles dias, crendo ficar mais fácil para as crianças reproduzirem, caso houvesse um futuro. Ensinariam aos seus filhos e aos filhos de seus filhos sobre um período em que havia somente água sob seus pés, e dos mil olhos de Orum que assistia a tudo sem dizer nada. Dias em que a água salobra, cheia de seres famintos, entregou moribundos - depois de carregar metade para o fundo.
Os vivos choraram seus mortos na faixa branca repleta de pedrinhas miúdas que luziam ao sol. Nada se assemelhava ao deserto ou se comparava à savana de onde tiravam o sustento. Não havia como voltar.
A costa revelava um mundo novo, talvez inexplorado, e certamente cheio de perigos. Os guerreiros não estavam mais entre eles, e os valentes que restaram estavam muito debilitados. Não entendiam porque a misericórdia de Orum havia poupado aquele arremedo de gente. No entanto, eram fortes de espírito e tinham a obrigação de sobreviver para honrar os idos.
A adaptação foi muito difícil. Tudo era selvagem e inóspito. Não conheciam e nem eram conhecidos pelos animais. Não sabiam se poderiam comê-los ou se ofenderiam algum deus daquele lugar. Andavam como que pisando em pedras pontiagudas, com o medo fungando em suas nucas. Ansiavam pelo perdão para um pecado do qual nem sabiam, e o conselho dos mais velhos os encorajava a resistir com bravura, mas até eles também sucumbiram com o passar das estações.
No entanto, as crianças eram curiosas e destemidas. Perdiam-se, escondiam-se, e descobriam coisas que costumam tanto assustar quanto encantar os adultos. Foi assim que cresceram e construíram um novo lar: Amanaram.
A mata nativa, antes hostil, revelou inúmeros segredos e espantosas novidades. Os pequenos constantemente se dispersavam atrás de bichos rastejantes, voltando com eles entre os dentes e com frutos coloridos em suas mãos. Apareciam molhados de uma água pura que brotava da terra, e descobriam cavernas em rochas tão altas que pareciam tocar os pés de Orum.
Aos poucos, perceberam que Orum não pretendeu mata-los, mas escolher os mais capazes para povoar o norte da América do sul.
Amanaram cresceu tão rápido quanto as crianças, e as que vieram depois e depois delas. Contudo, levou anos para decidirem ir mais além. Aos poucos, os adultos se embrenharam pela mata espinhenta, explorando os cumes mais altos; o necessário para mostrar terras mais distantes e o suficiente para perceber que não estavam sozinhos.
Ao longe, semelhantes de pele mais clara, aproximavam-se abrindo clareiras que aumentavam à medida que os anos se acumulavam sobre suas costas. O trauma da devastação ainda estava a espreita e Orum podia ter novas formas de testá-los.
Os montes lhes serviram de camuflagem, talvez não por muito tempo, mas o bastante para colocar em prática a sabedoria dos ancestrais.
Passados cem longos e desafiadores anos, aquele grupo desafortunado podia novamente ser chamado de tribo. Tornaram-se numerosos, com sangue novo pulsando em suas veias. No entanto, há muito não praticavam os rituais e quase haviam se esquecido deles em meio a tantas distrações. Porém, as cantigas foram lembradas com procedimentos da antiga magia que um dia havia feito deles uma grande nação.
Decorreram anos antes que os estranhos também os descobrissem. Furiosos com a magia que não entendiam, intentavam matá-los. Queimaram a vegetação, derrubaram árvores, e ergueram construções com símbolos de sua fé ao redor da montanha. Apesar da intimidação a tribo evoluía rapidamente, descobrindo elementos naturais que os deixavam invisíveis, os faziam dormir como os mortos ou aparecer em dois lugares ao mesmo tempo. Sentiam em seus ossos que o grande confronto não tardaria a acontecer.
Era noite alta quando se reuniram na praia entoando cânticos de invocação aos antepassados. As tochas dos inimigos foram avistadas avançando pelos montes, contudo não se assustaram. Espectros saíram feito sombras flutuantes a pairar sobre as águas salgadas, trazendo sobre si os espíritos dos animais que haviam devorado em um passado distante. Dentre eles, uma criança negra emergiu das profundezas erguendo as mãos para os céus gritando “Eu sou Orum”. Trovões tremeram os alicerces da terra, raios cruzaram os céus e uma chuva terrível se abateu sobre os montes, a mesma que outrora os despiu de sua morada. Porém, desta vez, estavam seguros envoltos por um escudo invisível, sustentado apenas enquanto a criança mantivesse os braços erguidos. Orum se fez presente entre eles, um privilégio que só tornaria a acontecer mil anos depois, quando Amanaram dominou o continente e o transformou na potência que vocês tem por nação hoje.
No anfiteatro da universidade de antropologia, o reitor, doutor em neuro linguística, deu por encerrada a palestra ao som de aplausos efusivos.
- O senhor tem alguma prova de que isso tudo foi verdade? – gritou um ouvinte, em meio a plateia agitada.
- Olhe ao seu redor e tire suas conclusões, meu jovem.
Com um sorriso enigmático, o palestrante cantarolou uma canção em xhosa ensinada por seus ancestrais, ergueu os braços e desapareceu como por encanto a vista de todos.
Fim
por: Rose Paz
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Rose Paz