O mar distante

Ao atravessar a grande praça vazia, a caminho de casa, tropecei em algo. Sob a luz difusa do crepúsculo, divisei uma grande concha do mar semienterrada na areia da passagem. Era um achado estranho, visto que além do oceano ficar centenas de quilômetros distante dali, certamente alguém a teria visto e apanhado se estivesse naquele local o dia todo. Julgando-a suficientemente bonita para merecer ser exibida num local de destaque, limpei-a da terra e a pus no bolso. Ao chegar em casa, exibi-a para minha mulher.

- Achei caída no parque. Ouvi dizer que exemplares raros podem valer um bom dinheiro; talvez algum colecionador tenha perdido...

- Depois de lavada, podemos colocar na estante - sugeriu ela.

Fizemos isso, e depois minha mulher pressionou a concha contra a orelha.

- Vai ouvir o mar? - Indaguei com um sorriso. - Isso é só superstição...

Ela me olhou com expressão absorta.

- Ei, isso é bom! Você deveria ouvir também.

Peguei a concha e levei-a ao ouvido. Era o ruído do mar, aparentemente, mas com ondas que se quebravam contra rochedos e um vento que a tudo fustigava. E gritos de gaivotas também.

- Caramba! - Exclamei, baixando o braço. - Esse é um mar furioso!

- E os gritos, você ouviu os gritos? - Indagou minha mulher.

- Das gaivotas? - Questionei surpreso.

- Achei que havia alguém gritando - esclareceu.

Levei novamente a concha à orelha. Sim, além do estrondo das ondas, uma voz de homem parecia gritar palavras que eu não conseguia distinguir claramente.

- Alguém parece que perdeu o caminho de casa - especulei. - Seja lá onde isso for...

- Talvez não o caminho de casa, mas o repouso eterno - ponderou ela. - Sabia que centenas de anos atrás, havia um cemitério de escravos no local onde hoje se encontra a praça? Acho que colocavam essas conchas sobre os túmulos, para impedir que os espíritos saíssem vagando por aí...

No dia seguinte, fomos até a praça e cavamos um buraco junto às raízes de uma grande árvore; e, lá dentro, depositamos a concha, para que nunca mais fosse perturbada por mãos humanas. Pelo menos, não antes de mais algumas centenas de anos...

- [16-01-2021]