Dentro da noite

Já era tarde da noite, e Ryan pensou ter ouvido o som distante de um trem passando pelo vale abaixo, o matraquear das rodas nos trilhos e o apito da locomotiva. Ele ergueu-se da cama e foi até a janela, cujas cortinas estavam afastadas; lá fora, apenas escuridão e a silhueta arredondada dos montes recortada contra o céu estrelado. Voltou a deitar-se e logo voltou a adormecer.

Na manhã seguinte, comentou o acontecido à mesa do café com a avó, Emma, a dona da casa. Ela encarou o garoto de modo estranho.

- Um trem, você disse?

- Sim, vovó. A ferrovia passa lá embaixo, não é?

- Sim, passa; mas é um ramal desativado, com mato crescendo entre os dormentes. Há mais de trinta anos que trem algum circula por ali. Tem certeza de que não sonhou?

Ryan ficou embatucado. Se havia sido um sonho, tinha sido bastante realístico.

- Honestamente, não sei vovó. Acordei com um barulho que parecia ser de um trem.

Levou a xícara de chá aos lábios e depois de tomar um gole, indagou:

- Até onde ia esse ramal, quando ainda havia trens?

- Até Glastonbury, creio - redarguiu a velha senhora. - Havia uma estação, quase no cruzamento da estrada por onde você veio; na verdade, era pouco mais do que uma plataforma com um telheiro de cada lado, sobre ela. Os trens não paravam muito por aqui, sequer para pegar ou deixar correspondência.

Certamente, pensou Ryan, aquele trem que ele ouvira - ou não - durante a noite, estava com pressa.

- Ainda ficou alguma coisa dessa estação, vovó?

- Eu realmente não sei... - admitiu Emma, enquanto passava manteiga numa torrada. - Os telheiros devem ter desabado há muito tempo, e o que sobrou, o mato deve ter coberto.

E diante da expressão pensativa de Ryan, acrescentou com firmeza:

- Espero que não esteja pensando em ir até lá, Ryan; pode ser perigoso - advertiu-o.

- Não vou entrar na estação, vovó - prometeu o garoto.

* * *

Era uma bela tarde de verão e o sol brilhava forte. Usando um galho desbastado como bastão de caminhada, Ryan desceu a estrada de terra que levava da casa da avó até o vale, onde passava a ferrovia desativada. Prometera não entrar na estação, mas nada dissera sobre percorrer os trilhos e passar por dentro dela; isso, caso houvesse como seguir adiante. Mas, logo verificou que o mato entre os dormentes não havia crescido tão alto assim; ele não teve dificuldades em avançar, até um ponto onde a ferrovia fazia uma curva após cruzar sobre a estrada, e alguns pilares de ferro batido erguiam-se sustentando restos de telhado sobre duas plataformas de concreto: a tão falada estação abandonada.

Ryan sentou-se numa das plataformas, pernas balançando sobre os trilhos, olhos fechados. Ficou pensando em como seria esperar ali o trem para Glastonbury, trinta anos atrás; o mais provável é que o maquinista não quisesse parar se ele estivesse ali, sozinho. Bem, ao menos teria que ter algumas malas consigo para comprovar que realmente estava à espera de transporte...

Na sua imaginação, um trem com quatro vagões dobrou a curva, resfolegando como um dragão mítico, jatos de vapor jorrando das rodas da locomotiva, uma coluna de fumaça expelida pela chaminé como que de um vulcão de metal negro. Os freios guincharam. O colosso metálico foi parando vagarosamente ao entrar no espaço entre as duas plataformas; finalmente, o maquinista colocou a cabeça molhada de suor para fora da cabine:

- Vai embarcar, garoto?

- Sim senhor! - Gritou ele para se fazer ouvir acima dos silvos e rangidos da composição.

- Esse trem vai para a Ilha Acorrentada! - Exclamou o maquinista.

- Não para Glastonbury? - Indagou Ryan, surpreso.

- Não mais - disse o maquinista, balançando negativamente a cabeça.

- E onde é essa Ilha Acorrentada?

O maquinista apenas olhou para o céu azul banhado de sol.

- Apareça alguma noite dessas e lhe dou uma carona - sugeriu, antes de voltar para suas alavancas e válvulas sem aguardar resposta.

Rangendo, a composição começou a movimentar-se novamente; ganhou velocidade. Pouco depois, desapareceu noutra curva entre árvores.

Ryan abriu os olhos, e ainda estava sentado na plataforma, com pedaços de telhas e caibros espalhados ao redor dele. Hora de desembarcar daquela viagem, decidiu-se. Depois, pulou nos trilhos e vagarosamente começou a fazer o caminho de volta.

* * *

- Vovó, o que é a Ilha Acorrentada? - Indagou Ryan naquela noite, à mesa do jantar.

Emma o encarou surpresa.

- Onde ouviu falar disso, Ryan?

- Acho que... tive um sonho - desconversou o garoto.

Emma deu de ombros.

- É uma espécie de lenda... seu avô costumava falar nela. Dizia que depois da Grande Guerra, muitas pessoas haviam desistido de viver neste mundo e partido para a Ilha Acorrentada.

- Partido... vivos? - Questionou Ryan cautelosamente.

- Sim, vivos - suspirou a avó. - Mas, claro, isso é só uma lenda. Não há nenhuma Ilha Acorrentada.

Ryan lembrou-se das palavras do maquinista e fingiu acreditar.

Naquela noite, acordou novamente em sua cama, no escuro da noite; podia ouvir o cricrilar dos grilos, e talvez o pio de uma coruja nalgum lugar nas árvores lá fora. E então, subitamente, uma voz distante que gritava:

- Todos a bordo!

Um apito; e depois, o resfolegar de uma locomotiva ganhando velocidade. O matraquear das rodas nos trilhos perdeu-se na distância.

Ryan ficou ainda um tempo de olhos abertos, olhando para a escuridão. Em algum lugar, lá em cima, estava a Ilha Acorrentada.

- [10-01-2021]