O farol e o fim da noite

Ana perdeu completamente o equilíbrio. Seu corpo estava imerso em um clarão. Seus pés não estavam mais no chão. Uma dor irradiava do quadril em todas as direções. Ela soltou a bolsa que estava carregando e pode ver ela cair em direção ao chão. Viu também as luzes dos postes e da fachada de uma lanchonete. Ouviu o baque seco do seu corpo sobre o metal. Sentiu o corpo rolar e então cair, e sentiu o contato sólido e áspero do asfalto.

Tudo isso aconteceu num intervalo de tempo muito curto, mas a sensação de Ana era de que tinham se passado anos. Ela pode pensar em várias coisas. A primeira delas, foi que não devia ter corrido para pegar o ônibus que tinha acabado de virar. A segunda, era que estava com fome e não poderia comer a sopa de lentilhas com curry que sobrou do almoço. A terceira era que sentia muita saudades de seu pais. A quarta era que por sorte, nessa noite, ela usava uma calcinha bonita. A quinta foi que ela tinha muito medo de morrer. A sexta era a de que ela certamente ia morrer. A última coisa que ela pensou foi de que a noite estava muito bonita.

- Ela apareceu do nada, eu juro. - disse o motorista do carro para um grupo formado por duas atendentes de lanchonete, um porteiro, um flanelinha e um bêbado. Todos irritados. Ninguém nunca apoia o motorista. É a tendência natural das pessoas de ficarem do lado dos mais fracos.

Já tinham chamado a ambulância e a polícia. O flanelinha repetia insistentemente que não podia tocar na vítima e o bêbado começou a gritar que ela tinha coxas bonitas e que queria tocar nelas. Uma das atendentes se ofendeu e começou a brigar com a o bêbado. A discussão se tornou física e o porteiro chamou um amigo que estava dentro de outro prédio para ajudar a separar. O motorista se sentou no meio fio e chorou. Não era um assassino, não queria matar ninguém. Nem aleijar. Nem machucar. Ele só queria chegar em casa. Abraçou os joelhos e chorou.

- Foi o moço ali – disse o flanelinha.

Enquanto os paramédicos tentavam reanimar Ana, o policial veio conversar com o motorista. Ouviu a versão dele do acidente, fez ele soprar num bafômetro, procurou vestígios de outras drogas no carro. Ele estava limpo.

- Eu juro, ela surgiu do nada.

Outros policiais analisavam o chão, procurando marcas de freadas. A medida que o tempo passava, o trabalho dos paramédicos se tornava mais feroz. Ana não reagia.

- Hora da morte, 3:27.

A pressão do motorista caiu e ele precisou de atendimento. O bêbado começou a gritar que ele não se importava que a moça tinha morrido, queria tocar nela mesmo assim. A atendente da lanchonete bateu com uma bolsa no bêbado. Briga de novo. O porteiro ficou na dele, tinha ganhando um arranhão e um soco no estômago da outra vez. Agora, os policias estavam lá.

Os paramédicos receberam um novo chamado. Mandariam um outro carro para buscar o corpo de Ana. O motorista sentiu a pressão baixar mais uma vez, mas não desmaiou. Ele só queria acordar desse pesadelo. Chegar em casa, deitar, dormir, esquecer que esse dia aconteceu. Morta. Ele tinha matado uma pessoa. Inadmissível, inacreditável. Ele era um assassino. Ele seria para sempre um assassino.

O farol do caro iluminava metade do tronco de Ana. Os carros que passavam jogavam luzes e sombras sobre o pequeno grupo. Uma luz forte parou em frente ao grupo; era o carro que levaria Ana. Assim que ela foi recolhida o motorista sentiu um alívio. O pequeno grupo se dispersou. Os policiais liberaram o motorista para seguir. Dentro do carro, foi como se todo o conhecimento tivesse sido apagado da sua mente e sobrasse apenas a imagem da moça caída, ensaguentada e iluminada pelo farol amarelado. Rodou a chave. A vida continuava, ainda que a noite tivesse chegado ao fim.