Ele morreu
Faliu dos dinheiros e, depois, dos órgãos. As camirangas sentiram o cheiro da morte e vieram lhe disputar os pedaços. Mas ele nada deixara de quinhão.
As rapinas lhe comungavam do sangue e lho maldisseram à cova. O choro empoado tornou-se em desdém: "maldito, morreu sem deixar haveres, nem pra morrer com honra serviu!"
O velho em espectro acompanhava a encenação mortuária entre arrebatado e infeliz, mas nem um pouco surpreendido. Sabia que há muito era repugnado. Morrer lhe era um alívio das dores e dos dissabores, mas pra que quis Deus que ainda enxergasse os seus de além túmulo? Não era hora mesmo de trancar olhos e ouvidos para o falatório ignóbil?
Pois saiba, homem que seus olhos vão onde está sua querência. Desapegue daqueles que não lhe fizeram jus à companhia.
A sineta tocou e o vento soprou mais forte, foi quando ele sorriu pela última vez do lugar de onde estava. O céu escancarava as pesadas portas para que finalmente pudesse entrar, mas ele... Resolveu se despedir como achou que os seus lhe requeriam.
Gargalhou de seu infortúnio e escarneceu de sua sorte, rogou aos céus que aos seus mandasse pragas indizíveis e naquela casquinada insana não viu que o céu se fechava.
Deu-se conta tempos adiante de que era um errabundo sem invólucro, vagando na superfície da terra.
Danoso ego que a tudo corrompe, antes fosse ao descanso merecido que lhe convidara o céu de meu Deus. Para que deu-se a caprichoso, descabido e praguejante discurso ofuscando a gloria eterna?
Errando pelo orbe confuso quanto ao decorrer do tempo lembrou-se da estimada e prestimosa esposa que há muito se encontrava livre da casca canal. Lembrou-se de sua devoção aos céus e do quanto sua mulher angustiava os joelhos em orações infinitas.
Rogou aos céus misericórdia: "Perdão, meu Pai! Perdão porque perdi a hora do céu, enraivecido fiquei ao ver a hipocrisia dos meus, se fiz algo de bom na existência corpórea, permita-me ao menos valer-me de um aceno da minha amada companheira."
O Senhor é bom e se compadece dos humildes. O homem viu uma nuvem se abrindo no céu ante o penhasco, e dali surgiu a senhora que tanto alegrou seus dias.
"Venha, amor meu, deixa de vagar e sofrer rancores, nada lhe coube trazer da terra, por que ressentir-se da mesquinhez alheia? Deixe que se entorpeçam na cegueira e na miséria espiritual. Seu lugar é no alto, pois sua missão foi bem cumprida."
O homem foi elevado ao lugar que conquistara quando trilhou sua jornada, aos que lhe praguejavam por nada deixar na matéria emanou a luz do perdão. Com o sentir restaurado, finalmente descansou em paz ao lado do único bem que se leva: o amor.