Um homem do povo.

Eita, que leitor nenhum aguenta essa confusão mirabolante.

Estou em um local de interesse público diante de uma comprida bancada de madeira que separa a área destinada aos clientes do lugar de trabalho e atendimento dos funcionários; assentado no seu ponto médio com o fundo voltado para os fregueses há um móvel que imagino ser uma geladeira de balcão para manter carne exposta pendurada em ganchos, no entanto, devido a sua posição invertida, não é possível saber se há mercadoria guardada no seu interior. Por causa desse expositor refrigerado, especificamente, a princípio considero que estou dentro de um açougue, mas não garanto, ao perceber que, do lado de fora há um espaço amplo com um grande círculo no centro exposto ao público, tudo limpo e bem cuidado com aspecto de praça de alimentação de Shopping Center.

Da direita a meia altura onde me encontro observo um senhor ainda jovem no limite do canto esquerdo sentado de frente para o interior do estabelecimento com seus braços cruzados sobre a bancada, ele gira a cabeça examinando o ambiente e quando volta o rosto para o meu lado, atento, imediatamente eu penso: Não tem como negar, é o Felipe Camargo. À suas costas a praça desapareceu feito magia e diante da passagem escancarada agora só consigo ver, num espaço que vai do chão até a altura de 70cm ou entorno disso, uma ponta da calçada pegada a soleira da porta, que está totalmente levantada; ainda que não haja qualquer bloqueio físico, nada mais é possível enxergar que ultrapasse a referida medida.

Quando retorno a vista, o ator famoso não está mais lá, em seu lugar há uma televisão ligada e apoiada sobre o balcão transmitindo suas imagens. No monitor ele está trajando roupas de época, o cabelo aparece bem cortado, usa óculos e tem as feições de um jovem rapaz.

Ouço alguém perguntar: - Lembra-se dele? Trabalha em novelas da Globo.

- Sim, eu respondo, lembro-me, fazendo justamente este personagem.

A retrospectiva do seu trabalho continua e o Felipe surge sem os óculos e com outro aspecto, seus cabelos estão longos e ele diz coisas que não se ouve; a bancada tomou a forma de uma extensa tábua de madeira bruta enegrecida por ficar exposta às intempéries do tempo sobre um grupo de cavaletes, de pé defronte dela ao comprido acompanho a troca de imagens no aparelho de TV que está próximo da borda oposta, algo distante de mim; percebo que um campo verdejante de grama viçosa ocupa toda a área aberta ao meu redor e uma floresta densa cujos troncos de árvores formam uma sebe viva, compacta e impenetrável, cerca e delimita todo o entorno à meia distância.

Inesperadamente o cenário transformou-se num galpão de fábrica devassado e espaçoso, ao fundo, no chão de cimento, há uma pilastra afastada da parede por um caminho coberto que vai de um lado ao outro da construção; na frente dessa coluna foi colocado um conjunto de bar formado por uma mesa pequena com duas cadeiras, único mobiliário existente; nosso ator está sentado do lado direito com os braços estendidos e algemados apoiados sobre o móvel, a cadeira do lado oposto encontra-se vazia. Ele veste um uniforme de brim na cor laranja composto de calça e jaleco de manga longa, seu rosto bem escanhoado e o cabelo raspado na máquina zero, deixou o seu semblante semelhante ao de um presidiário. Notei com surpresa a maldade em seus olhos e um sentimento ruim abalou meu coração.

Uma voz anônima diz que seus filhos nasceram, estão crescidos e se desenvolvendo muito bem.

Quando a voz emitiu tal esclarecimento, pelo lado esquerdo do corredor surgiu um homem vestido em traje comum: tênis claro, calça de jeans azul celeste e camiseta branca, este se aproximou do detento rapidamente e seguiu caminhando sem parar, sumiu à suas costas; embora inaudível, deu para perceber que os dois travaram um curto dialogo. O encarcerado movimentou a cabeça com vigor enquanto conversava e, pelo jeito que mexeu a boca, pareceu que falava rápido e impunha muita ênfase nas palavras, talvez para fazer sobrepor seus argumentos ou para discordar com energia, a especulação fica por conta da distância onde me encontro e testemunho tudo.

A voz anônima tornou a se manifestar para emitir outra notícia: "A preocupação é não deixar suas crianças o verem na tevê com esta nova aparência".

As mudanças intermitentes acontecem em intervalos menores e uma camisa de malha branca e manga curta já substituiu o jaleco de cor laranja que ele usava. Ainda sentado no mesmo lugar aquele indivíduo passou a fazer movimentos obsessivos e ritmados com a cabeça, para frente e para trás.

Ouvi a informação e logo percebi que o olhar do sujeito estava diferente, muito concentrado e anormal, típico de um alienado que perdeu a razão. Ele continua sendo o Felipe, um cara ajuizado, mas é possível afirmar com toda tranquilidade ser qualquer outro, um louco sem tino, por exemplo, completamente desvairado e de comportamento imprevisível, menos o Felipe Camargo.

O susto com a mutação inesperada e a sua nova fisionomia me deixou em suspense.

A voz insistente divulgou novos dados: "Será esse o seu papel, um homem do povo acometido por problemas psíquicos. E tem uma porção de outros idênticos a ele espalhados por aí afora".

A explicação é que este desequilibrado criará inúmeras situações inusitadas; sempre calado roubará bolsas de transeuntes distraídos em locais públicos, emitindo grunhidos tomará objetos das pessoas à força, viverá nas ruas e praças tal qual um sem teto dormindo sob as marquises de edifícios. Nem sempre haverá um policial ou segurança por perto para detê-lo. Ficará por conta de a vítima saber o que fazer antes de reagir para se defender dos seus ataques.

De súbito o cenário é outro, de novo. Estamos de volta ao açougue. Acomodado numa posição mais elevada agora eu observo o ambiente quase de cima para baixo. O nosso personagem está em pé diante do balcão de mármore do lado direito da geladeira, a mudança nos aproximou, ficamos praticamente frente a frente um do outro. Ocorre uma grosseira troca de cena e imediatamente o vejo de quatro sobre a mesa de atendimento tal qual um cachorro cheirando um osso; numa cobiça exagerada o cara abaixou o corpo e quase tocou com o nariz os produtos ali expostos, em seguida e sem motivo aparente retomou o seu lugar e recompôs sua postura; de pé, com os braços estendidos e relaxados à frente do corpo uniu as mãos e cruzou os dedos abaixo da cintura, baixou a cabeça e fitou o chão; do nada, numa ação própria da intuição, ou, como se tivesse pressentido que eu estivesse atento ao seu modo de agir, inesperadamente o maluco soergueu as pestanas e relanceou suas vistas na minha direção, somente elas; levei um baita susto e tive pressentimentos ruins ao constatar o olhar da perversidade mirar diretamente no fundo dos meus olhos, mesmo que muito rapidamente.

A metamorfose transformou sua maneira de ser outra vez, o rosto continua bem escanhoado, o cabelo crescido em sua cabeça, embora curto é ligeiramente loiro, não tem corte definido e se mostra completamente desgrenhado; por causa das suas vestes, uma colorida e folgada camisa de viscose listrada e uma calça de brim na cor azul, ele exibe a figura de um simples consumidor.

De repente, vejo ao meu lado um senhor preto de idade avançada e de óculos com lentes transparentes na cara, tem a barbicha e as sobrancelhas brancas, surgiu envolvido num avental de manga comprida, branco também, e usa uma touca alva revestindo a cabeça, ele já apareceu trepado numa escada abastecendo uma estante vazia pregada no alto da parede nos fundos da loja. Do cesto que carrega segurando com uma das mãos, apanha com a outra os artigos que acomoda nas prateleiras e que pertencem a mesma linha dos produtos expostos no mostrador ao alcance do público, aqueles que provocaram a ganância do idiota sem juízo.

À medida que segue trabalhando sem perder a visão do salão, o funcionário espreita o doido que, ansioso e inquieto, observa-o de esguelha na expectativa de que se distraia, e, enquanto nada acontece, movimenta o quadril feito um pêndulo, de um lado para o outro incansavelmente, evidentemente premeditando o exato momento de aplicar o próximo golpe.

As pessoas por trás do doente mental que esperavam a vez de serem atendidas tiveram apenas os pés revelados no único espaço externo visível de onde eu me encontro, aquele bem na ponta da calçada junto à soleira da porta; por já conhecerem o tipo e seus problemas psíquicos, ao se aperceberem do furto iminente, exibidamente e sem o menor constrangimento afastaram-se dele retrocedendo um passo, todas juntas e ao mesmo tempo, conforme um grupamento militar exercitando ordem unida.

Em flagrante expectativa esses fregueses aguardaram a sua investida. Eu, que não fiquei para testemunhar o resultado, acordei.

Assim começou e terminou mais um de meus sonhos.

Dilucas
Enviado por Dilucas em 29/10/2020
Reeditado em 27/12/2023
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