291 - Trapezista
Tinha a boca amarga e a cabeça oca. Doíam-lhe as costas. Acordou numa cama de caravana de circo e, olhando à sua volta, viu a roupa que usava no trapézio, as sapatilhas douradas e, nos cabides suspensos de um fio, três ou quatro dos seus vestidos simples. Não se recordava de mais nada: como vivia antes do circo, como foi que passou a ter o ritmo daquelas pessoas que espreitavam, cumprimentavam da porta, entravam sem bater com um à vontade de estarrecer. E ela sem voz, sem saber que palavras lhes dizer, sem força para se levantar. Trouxeram uma bandeja com o jantar. Havia sopa de tomate, arroz de frango, uma tangerina e um copo de plástico com água. Pouco depois, o palhaço já pronto para actuar, abriu a porta, jogou-lhe a luz da lanterna para a cara, entrou, acendeu a lâmpada do tecto e avisou: - Entras dentro de uma hora, Marina. E ela, sabendo agora como se chamava, levantou-se, lavou o rosto pálido com o resto da água do jarro, comeu a tangerina, vestiu a roupa para o espectáculo e começou, por fases, a pintar-se. Primeiro a base, depois os olhos e por fim a boca. Soltou da rede os cabelos, balançou a cabeça para os acomodar, olhou-se outra vez no espelho oval, ajeitou a saia e o corpete, encheu o peito de ar para estudar as folgas do tecido, atou a capa com bordado a lantejoulas e disse para si: - estou pronta. Quando me vierem buscar tenho de saber, exactamente, o que vou fazer. Tenho ainda quase meia hora para recordar tudo. O palhaço é Gervásio, sei porque ele disse antes de entrar, mas mais nada. Pouco depois, ainda dentro de um nevoeiro que tapava todos os rostos, que suavizava a iluminação da tenda do circo, que baixava o som da música roufenha, alguém bateu no vidro da janela e ela ouviu-se a dizer: já vou! Já vou! Só depois acordou na sua vida que não era, nem pouco mais ou menos, a de Marina.