Natalia

Respirava o ar do aeroporto. Observava o movimento das pessoas e tentava ler que viagens estariam dispostas a enfrentar. Ri dessa visão e deixei cada um seguir o seu destino. O meu era o México, memórias e profundidades: reconexões. Enfrentar, eu sim, uma viagem que por tanto tempo posterguei e que hoje era minha tábua de salvação.

Meu corpo estava cansado, sentia um peso enorme tensionando as costas, a cervical formigava e meu pescoço inquietava a cabeça e os braços. Continuava respirando fundo e o ritmo tentava acalmar-me, estava ali, cheguei cedo, logo embarcaria e o ciclo começaria a fechar-se. Observava as pessoas... agora apenas via seus rostos, expressões, sinais de cansaço e alegria. Indo ou voltando? Alegrias ou arrependimentos? Coragem ou medo?

Um sorriso nervoso mordendo o lábio inferior captou-me no meio da multidão e provocou um arrepio profundo. Olhar determinado, cabelos curtos ondulavam por entre corpos que rapidamente cruzava. Andar leve, parecia levitar, com cadência dançante e altiva. A imagem foi crescendo, agigantando-se aos meus olhos arregalados até dar-me conta que parava na minha diagonal, parcos seis, sete metros, procurando confirmar que estava no portão certo. Estava! Eu sei que estavas! Minha respiração parou em extrema tensão até que colocaste o aparelho no bolso, sentando para esticar as pernas e relaxar de olhos fechados.

Olhei para meus pés, respirei mais fundo ainda tentando recuperar todos os sentidos, o ar voltava a inundar meu ser. Não acreditava no destino, não conseguia entender como aquilo podia acontecer. Mas a força e energia que me impulsionou naquele instante, para vencer toda a sorte de barreiras que a timidez sempre impôs, movendo meu corpo por intermináveis metros, até hoje espanta-me! A boca tinha vida própria e meu corpo parecia estar sendo movido por controle remoto, mas consegui ouvir o som que saiu com uma clareza assustadora: “-Natalia?”

Sabia que era ela, nunca esqueceria aquele sorriso, as covinhas deixando sua boca entre aspas, o nariz arredondado, perfeito, dividindo a força daquele olhar. Sabia! Ela era dona do meu silêncio e agora roubava o seu. Ou o recuperava, poucas palavras ela tinha marcado nas minhas memórias.

O aeroporto parou, a multidão estática, os painéis deixaram de incrementar o tempo. No lugar disso, memórias! A praça da fonte! Quantas vezes te vi passar? Quantas manhãs acordei assustado achando que tinha perdido a hora para tentar cruzar contigo a caminho da escola? Quantas vezes observei-te escrevendo, desenhando incontáveis caderninhos, sonhando em poder ter espaço no meio da energia que espalhavas por tudo aquilo?

Sim, eu era, fui a Natalia e aquele seria mais um 1 de Novembro como todos os outros. México e suas tradições marcantes seriam novamente sepultadas no passado. E não adianta o destino tentar reverter esta decisão. Colocar Daniel na minha frente é um grande desafio, mas vamos lá!

- Sim Sr. Daniel, sou eu! Marcamos este encontro, esqueceu?

Enquanto seus olhos e corpo iam tomando contornos de um enorme ponto de interrogação minha crueldade dissipava-se. Ele nunca foi o culpado.

Tivemos uma conversa profunda e produtiva, o “inimigo” tinha as mesmas deficiências e dúvidas que eu. Conseguimos sentar juntos no avião e descobrimos que nossa imaginação tinha construído personagens totalmente distantes da realidade. Ou nem tanto... mas a vida acabou nos moldando de formas diferentes que nós mesmos imaginávamos. Foi muito bom revisitarmos o passado pelo olhar do outro.

Quando nos demos conta estávamos naquela praça, a fonte continuava projetando água cristalina de encontro ao céu azul de nossas memórias. As lágrimas que rolavam por nossa face tinham agora outro sabor, sentido. Estávamos novamente apaixonados... pela vida! Um longo abraço marcou nossa despedida. Fomos em busca de novas perspectivas, conexões, deixando para trás mais de 25 anos de rastros.

Seria um feriado marcante, viva os mortos e tudo o que nos edifica!

Fernando Antunes
Enviado por Fernando Antunes em 16/09/2020
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