Dom Simeão e a casa do Iguana

Tudo vai bem até se entrar naquela casa: dali ninguém sai ileso.

Em primeiro lugar, desejo dar pêsames aos que pensam que um homem é uma coisa e suas palavras outra coisa. Idiotas vocês que leem e só veem palavras. Aqui há mais que palavras. Há fibras arrancadas do coração, suficientes para uma rede inclusiva de todos os sofrimentos.

- Ele escreve bem! Vê como alitera e constrói metáforas, repara como tem cuidado no ritmo da frase...

Um homem não come metáforas nem bebe aliterações. E anda é com as pernas, não com o ritmo da frase. Um homem é um animal metralhado, vertendo sangue aos golfões, como uma torre de petróleo. E um homem escreve perdendo os poros. Sua dor escapa nas palavras e é entregue aos convivas em baixelas de papel. Só um tolo não entende que é sua dor que escorre incessantemente, um fluxo inestancável de uma ferida que não se fecha. Escrever para sobreviver, eis a solução.

- Vê como seus personagens (estúpidos) são interessantes. Aliás não gosto muito é daquele tal Dom Simeão, o que compunha melodias escutando o miado de um gato, tirando dali o seu sustento vital.

Mal sabem eles que não há personagens. Todos os que aparecem são o próprio homem multiplicado, sofridividido, esvaindo-se em milhares de outros e tentando agarrar-se em alguém nessa multidão, um bêbado procurando chão debaixo dos pés.

Tudo vai bem até que se entrar naquela casa. Dali ninguém sai ileso. Lá havia uma lady de corpo sensual me atirando livros em plena cara e me obrigando a ler, valha-me Deus. A lady mandou, o homem leu, leu, leu, até ter calos nos óculos, até descer bem fundo na cisterna e subir ao extremo dos céus para saber, saber, saber.... Lá, aprendeu símbolos, vida de livros, metáforas, antes de ser apresentado à brutal realidade que não se exaure. E que o choque com essa realidade – o símbolo era o Iguana de Páscoa, surgindo do passado e do mar sem fim para lhe dar uma rabanada no rosto, violenta, como a dizer: “aprende, palhaço, a vida é isto aqui, chega de metáforas”.

Eu não deveria ter entrado naquela casa. Sofri muito, quanto mais tempo por ali, mais o homem se afunda. E ainda existem idiotas que separam o homem e as palavras, talvez por acanho, talvez por omissão. Que não veem o homem nos seus escritos. Que não reconhecem o pobre animal metralhado, buscando ele mesmo tapar os buracos das rajadas, porque só conta consigo mesmo e precisa economizar sangue. Pobres idiotas roçando a superfície da água, só porque têm medo de se afogar.

Bem, cansado de bater cabeça, começo a pensar que o melhor a fazer é escutar Dom Simeão, o acordeão e os miados do gato. É fazer como ele, sentar na sacada do sobrado nas tardes de domingo e esperar o tempo passar, o olho velho atento aos rastros do miado e ir compondo as estranhas melodias, sem sentido no mor das vezes. Não posso dizer, ao certo, se pessoas como ele, alguma vez, já entraram naquela casa. Acho que não, são assustadoramente tranquilas, não sabem o que é metáfora.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 15/09/2020
Reeditado em 17/09/2020
Código do texto: T7063419
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.