As ruínas ivônicas no turbilhão do vago mundo
Quando venho a dar por mim, os pés já trilham as derradeiras ruas de pé-de-moleque, nas quais ainda existem os quintais sem muro, lugares onde restou teimoso um cheiro de séculos passados. E o pensamento vagabundo começa a imaginar coisa que nunca viu, as pepitas de ouro à flor da terra, o recolher-se todo mundo às oito da noite, aquela modinha, sinos de igreja, lamparinas e lampiões, aquele aroma, aquele temperamento de um mundo que está acabando de morrer. E tudo isso existe ainda pelos lados da Olaria, na rua dos Crentes, podem acreditar. Por ali.
Eis que, de repente, me encontro a contemplar estranhas construções, altas, de majestosas colunas, muito embora em ruínas. Me assusto, deveras, eu que pensava conhecer cada palmo de Pitangui, me surpreendo ainda mais por encontrar o mar. Então, finalmente, ele conseguiu chegar aqui, hein? Será que fiquei tanto tempo fora? E este mar estranho chega bem perto das construções, algumas se encontram semi-encobertas.
Lá, sua cara de falcão, seu olhar atento e demorado de conhecedor, está Sô João:
- Mas, Sô João, eu não sabia que existiam ruínas assim em Pitangui!
- Poucos sabem. Mesmo os que veem com os próprios olhos não acreditam, pois os livros de História afirmam que não houve civilização de tal estirpe no Brasil. E, você sabe, não interessando aos livros que existam, ignora-se mesmo a evidência das ruínas. O mundo é assim.
Sô João, fala mansa, mas firme, nem se volta nem retira os olhos de onde estão: nas ruínas. Pensei perguntar-lhe se ainda canta “O Ébrio”, se imita Vicente Celestino, mas me contenho. Ele está ensimesmado. Acocorado a pitar seu cigarrinho sem filtro, o olhar perdido nas construções, só pelo passo me conheceu e por isso nem me oferece o cigarro: já fui ponta-direita do seu time e sabe que não fumo. Seu paletó é o mesmo de quando o vi pela última vez – e põe tempo nisso ... – e tudo leva a crer que Sô João se manteve fiel à promessa de jamais lavá-lo ou passá-lo. E continua:
- Além do mais, depois que fecharam o Canal de Suez, poucos puderam vir aqui. A água subiu muito e foi se juntando, juntando... acabou não deram mais vistos pra turista, pra eles não saírem por aí contrariando a História. E a água estragou muita construção, isso é verdade. Veja as de acolá!
Só fiquei ruminando o que poderia ter o Canal de Suez com as ruínas de Pitangui.
- Estas ruínas parecem romanas, Sô João!
- Só para os leigos. São ivônicas, têm bastante semelhança com as romanas, mas, como disse, só para os leigos. Repare que as colunas romanas, por exemplo, têm a mesma circunferência dos pés à cabeça. Já as colunas ivônicas são mais grossas na base que no cimo. E, partindo disso, é toda arquitetura dos Ivônicos. E toda sua filosofia. Você já leu, por falar nisso, “ O Turbilhão do Vago Mundo”, o tratado mater de filosofia ivônica?
- Eu não. Até queria ver isso.
Mas deixo Sô João, a conversa podia encompridar e havia mais coisas estranhas para ver. Saio de mansinho, e ele fica a conversar com Dona Arquitetura e Mãe Filosofia, nem dá pela minha falta. Me atrevo a seguir em frente, já preparado a encontrar novas surpresas em lugares que não conheço. E, talvez ainda como parte das ruínas ivônicas, encontro galerias com jaulas de ferro a cada lado, chão de terra batida, o que me fez logo pensar no Coliseu e seus subterrâneos. Será que os romanos foram influenciados pelos tais de Ivônicos? Na volta, vou perguntar a Sô João.
E, passando de um lado para outro, estão leões e tratadores, tratadores e leões, por toda a parte a repetência de cenas, mas um cheiro de segurança paira no ar e não vejo nenhuma razão para me atemorizar por causa das feras cabeludas e irritadiças. Só sei que, de repente, me dou conta de que já estou num outro contexto, há agora touros e tratadores e tudo faz crer que os animais – aqui sim – são perigosos. Aviso a outros que, não sei como, apareceram subitamente a meu lado e parecem tão turistas quanto eu, me seguindo como se de verdade eu fosse o guia deles:
- Gente, acho que vão soltar os touros em cima de nós!
E trato de escapulir, fujo da responsabilidade. Caio na rua do Tisnado e aí está, à janela de uma casa que nunca foi a sua, Selma Colunista. Traz na mão algumas folhas de papel e suponho que esteja rascunhando algo para a próxima edição do “Município”. Falamos qualquer coisa, eu sobre a Sandice, ela sobre a Caridade, me convida pra entrar, não entro nem me despeço.
Depois (como explicar racionalmente), apareço caído, sujo e descabelado, no deserto de Rub’al-Khali, em plena Arábia Saudita, com a vontade louca de ter nascido em 1700 ou coisa assim, no tempo das batatas de ouro e dos casamentos contratados. Levanto-me, livro-me da areia, apanho o bordão e lá vou seguindo, que a vida é dura e há que ser forte no turbilhão do vago mundo.
(Jeddah, Arábia Saudita, julho/1975)