Sob as asas da coruja e a pata suja de sangue
Vem a Morte e abre suas asas de coruja sobre o rosto de Álvaro George, o indomável.
Caído no meio do arrozal, ainda teve luz para olhar a lua se arrastando dali com sua pata de sangue. A última vez para Álvaro George, o indomável.
E como gritar agora sua verdade, agora que a goela começava a secar e a vacilar? Tendo tudo vivido, a experiência já cozida em sua cacunda ao redor de tanto tempo, o que fazer dela agora, de que serviu tudo isso, Álvaro George, oh indomável?
E Álvaro George, o indomável, sente se desfigurando na memória o rasto do passado, o vestido branco do casamento, Araquenina e as flores de laranjeira, a taça azul onde beberam do champagne...
E agora bebe ele sozinho do vinho tinto do sangue. Poderia ter morrido gordo como um porco capado, se aposentado velho como um jumento azul, mas não. Ia morrer muito moço, encharcado do barro do brejo, no lodo esverdecido, a barriga chamuscada, a camisa em tiras e o braço na tipoia. E aquela sede, a secura na goela, prévia do primeiro abraço da morte...
Triste fim para Álvaro George, o indomável, que podia ter morrido porco gordo ou jumento azul, mas não. Estava ali, agora, sob as asas da coruja, à espera da última baba da vida lhe lamber o coração, para, depois, se acercar da outra coisa, a negra cerca das sombras.
O que está sendo agora. E a lua-cheia do sertão, como qualquer reverência, se lambuza inteira ao se enxugar dum olho com a pata suja de sangue. E a noite, de repente, se tornou a mais rubra e a mais escura.
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...e na cidade mais asséptica do mundo
Na cidade mais asséptica do mundo, todos se orgulham: não há mais vírus nem baratas. Nem camundongos nem percevejos.
E ninguém grita ou esperneia depois das dez da noite, mesmo que seja um parto ou um perigo de morte. Tudo, tudo, felizmente, está controlado.
(Brasília, DF, 11/74)