CAPÍTULO III
 
 Usei o termo “mulher” para se referir à Rosana porque não gosto da palavra “esposa”. Parece-me pedante e burocrático demais. Já a palavra “mulher” é mais aconchegante e intimista, e ao se referir á ela como “minha mulher”, sempre senti a presença de um laço mais profundo entre nós que extrapolava em muito o vinculo legal estabelecido no cartório quando nós nos casamos. Esposa é um termo que dá uma ideia de sociedade; vem do latim sponsa, que quer dizer prometida. Soa como uma obrigação que se assume por conta de uma promessa, um acordo, sei lá, qualquer coisa que não me soa muito bem. Já mulher, parece mais coloquial, mais apropriada para representar uma relação entre dois seres que se prestam a viver uma vida juntos, em um clima de intimidade e cumplicidade total. Como diz a Bíblia, homem e mulher, Deus os criou, macho e fêmea Ele os fez.
̶  Esta é Rosana, minha mulher  ̶  era como eu a apresentava aos meus amigos. E ao falar assim era como se um elo de cumplicidade orgânica se estabelecesse entre nós, algo assim como o que Adão deve ter sentido quando Jeová lhe apresentou Eva, pois consta que nesse momento ele, Adão, disse “eis aqui agora os ossos dos meus ossos e a carne da minha carne”, e isso, posto está que deve ter sido para esse nosso primeiro ancestral, mais que uma simples formalidade que se estabelece a partir do momento em que um juiz de paz declara casado um par de noivos e eles passam a ter certeza de que podem fazer agora por vias de direito o que já andavam fazendo de fato.
 
Esclareço que só usei a fórmula bíblica acima mencionada
para efeitos literários. Na verdade eu “esposo” a tese evolucionista e não consigo ver nenhuma lógica no criacionismo.
É que a antropologia bíblica, para mim, é um tanto ambígua quando fala da criação do homem. Em Gênesis, 1: 2, 6, por exemplo, encontramos um texto que diz: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e presida aos peixes do mar, às aves do céu, e aos animais selváticos e à toda terra, e a todos os répteis que se movem sobre a terra.” Desse estranho enunciado, a gente logo pensa que Deus não estava sozinho quando fez o homem, pois a sua locução foi registrada no plural (façamos o homem). E depois, que o homem foi criado a partir de uma imagem que já existia, ou seja, a do próprio Deus ou quem com Ele estava naquele momento.
Até aí tudo bem, pois poderíamos estar diante apenas de uma questão de linguagem. Podia dar-se o fato de que Deus estivesse falando consigo mesmo e se referisse a si próprio no plural como muitas vezes fazemos quando estamos conjeturando. Afinal, sendo Ele plurimorfo, onividente e sempiterno, não haveria nada de estranho nessa locução. Porque todos esses termos são relativos a plural e singular e nesse sentido não haveria nada de estranho nisso;
O problema vem depois quando a Bíblia trata da descendência de Adão. Porque então ficamos sabendo que o primeiro filho do casal terrestre foi Cain, e o segundo Abel. Consta também que os dois entraram em conflito e Cain, o mais velho, matou Abel, o mais novo. Deus não gostou nem um pouco dessa ação e colocou sobre a face de Cain uma marca. Depois mandou que ele saísse das cercanias do Éden, onde a família de Adão fora morar após sua expulsão do paraíso. A marca, segundo o cronista bíblico, foi posta em Cain para que, aquele que o achasse e identificasse, não o matasse, pois se o fizesse, Deus tiraria do assassino a sua vingança sete vezes.
Ressalta, desde logo, que Cain e Abel não eram os únicos seres na terra além de seus pais Adão e Eva. Pois se fossem, quem seriam aqueles que poderiam achar Cain e o matá-lo?
E Deus confirma essa assertiva dizendo: “Não será assim, mas qualquer que matar Cain será castigado sete vezes mais. (...)  E Cain, tendo se retirado da face do Senhor, andou errante sobre a terra, e habitou no país que está ao nascente do Éden.”  
Logo adiante se diz que Cain conheceu sua mulher e com ela gerou um filho a quem chamou de Enoc. Mesmo considerando o que se diz em Genêsis, 5; 4, que Adão viveu oitocentos anos e gerou filhos e filhas, de certo a mulher de Cain não podia ser sua irmã, pois Cain havia “ se retirado da face do Senhor” e habitado num país ao nascente do Éden, longe, portanto, do local onde habitava sua primitiva família.
Assim, pois, tudo está a indicar que a família de Adão não foi a primeira entre a espécie humana, e que quando Deus o fez “à sua imagem e semelhança”, outros seres humanos, ou a eles semelhantes, já existiam sobre a face da terra.

    Escrevi tudo isso para justificar a minha preferência pelo evolucionismo. O que os adeptos dessa teoria dizem sobre esse assunto me parece mais lógico. Eles acham que a criação do homem, conforme sugere a Bíblia, é uma metáfora que exprime o momento em que o homem se destaca entre as espécies animais, adquirindo a capacidade de refletir. Quer dizer: é o momento em que ele se torna humano. Dessa forma, a metáfora bíblica que diz que Deus “formou o homem do barro da terra e inspirou no seu rosto um sopro de vida, significa que  o “barro da terra” é um designativo do primitivo ancestral humano, evoluído da sua matriz animal. E o “sopro divino” é a condição mental adquirida pela espécie humana quando desenvolveu a camada neural que lhe deu a capacidade de refletir.
Esta tese, sustentada pelos antropologistas e psicólogos do evolucionismo, vê o homem como resultado de uma longa evolução que se processou no correr de milhares de anos e que foi conduzida pela sua necessidade de desenvolver meios cada vez mais eficazes de sobrevivência, em face de um ambiente hostil. Assim, o homem, á medida que ia desenvolvendo essas qualidades neurológicas, que o fazia cada vez mais sábio, ia também adicionando novas camadas neurais á estrutura do seu cérebro, as quais foram também legadas aos seus descendentes como herança biológica. O homem, portanto, é produto de uma longa evolução, que ainda não terminou. 
 
Isso, pelo menos era o que eu pensava antes da estranha experiência que eu tive com a volta da falecida. O que eu penso e sinto agora é um mistura extravagante de conceitos e sentimentos que ainda não foram devidamente organizados em minha cabeça. Esta é uma das razões do porque eu resolvi colocá-las no papel. Tudo isso tornou-se um problema para mim, e um problema não se resolve enquanto ele está dentro da nossa cabeça. A solução costuma aparecer somente quando ele pode ser colocado fora de nós e nós podemos olhá-lo com objetividade. A minha esperança é a de que, à medida em que eu for construindo esta narrativa, eu possa também encontrar, se não uma resposta para a minha perplexidade, pelo menos uma satisfação para os meus anseios.
 
̶  Este é Francisco, meu marido  ̶  era como Rosana me apresentava aos amigos dela. Não usava o termo “esposo” por razões idênticas às minhas e nem coloquialmente me chamava de Chico. como a maioria dos xarás do santo mais simpático do calendário católico costuma ser chamado.
 ̶  Parece que estou falando do meu dono e não do meu homem  ̶  ela dizia, quando lhe perguntavam porque não me chamava de seu esposo. E de fato ela nunca me chamou de esposo, “ o homem que, segundo ela dizia, “no antigo direito romano era o detentor da sponte, ou seja, a vontade que dominava, e que fazia da mulher um bem de sua propriedade, tanto quanto uma casa, uma mula ou uma latrina dentro da qual podia descarregar o produto da sua libido e depois, quando se cansava dela, substituir por uma nova.” E ela, que era uma mulher lida e bem informada do significado das palavras, sempre citava, em apoio a esse discurso, o infeliz verbete que Santo Agostinho colocou no verso 405 do Sermão 322: “ Homem, tu és dono; a mulher é tua escrava”.
Por essa e por outras razões é que ela escolheu ser evangélica, dizia ela. “A Igreja Católica patrocinou a escravidão da mulher durante milênios. E ainda continua com esse ranço até hoje, condenando o aborto e abonando as infelizes palavras de São Paulo, que mandam as mulheres, em tudo serem sujeitas aos seus maridos, como se elas fossem serviçais deles e não suas companheiras de jornada.”
Pode-se até achar alguma contradição nessa postura dela,
porquanto foi o Apóstolo Paulo que construiu as bases segundo a qual o Cristianismo prosperou e deu alicerces, inclusive para os cultos evangélicos que nasceram a partir da Reforma Protestante. Mas Rosana, que frequentava a Igreja Batista, justificava essa postura com o argumento de que o credo Paulino, adotado pela Igreja de Roma, tinha sido, nessa parte, reformado pelos seguidores de Lutero e Calvino, e que essa reforma elevara a condição da mulher à parceira do homem, permitindo que ela assumisse posições de liderança dentro da Igreja e, por consequência, na vida social, tornando-a uma sócia do homem e não sua mera consorte. Daí a abolição do celibato para os pastores, que passaram a ter em suas mulheres um apoio que um padre católico não tinha.
Ah! sim. Isso não quer dizer que a Rosana fosse uma dessas feministas, que por serem tão feias, costumam adotar essa postura de buldogue das reivindicações femininas de uma forma tão estereotipada que a gente não sabe se elas, de fato são mulheres lutando por direitos que lhes foram interditos por uma sociedade patriarcal, ou simplesmente fêmeas que foram rejeitadas no mercado da procura masculina e em consequência, desenvolveram uma ojeriza pelo sexo oposto, em função do pouco sucesso que faziam com os homens.
Rosana não. Ela era uma mulher bonita e positivamente feminina. E como tal tinha consciência da condição dela como parceira de uma relação que necessita de dois pólos para ser efetiva e produzir bons resultados. E numa relação dessas não há que se falar em direitos e obrigações de um e de outro, mas de um compromisso com um resultado que pode ser substantivado na palavra família, e, mais que isso, elevado á própria condição de missão de vida, pois para dar continuidade à ela, sempre numa órbita mais elevada da espiral que ela forma, é que nascemos.
Nos tratarmos como homem e mulher, cúmplices em um plano de vida, foi um acordo tácito que nós fizemos. Ser apenas duas criaturas de sexos diferentes que haviam se juntado por razões de íntima cumplicidade afetiva e concordar em ver os liames burocráticos que o casamento civil nos impunha apenas como obrigações que havíamos cumprido para satisfazer a sociedade era uma coisa que jamais aceitaríamos. O que nos manteve juntos por vinte e cinco anos foi a nossa satisfação de termos um ao outro e nos encontrarmos á noite, depois de um dia de trabalho. Principalmente saber que tínhamos um ao outro e que cada um entrou no espaço físico e na esfera energética dos pensamentos do outro por consentimento mútuo e desejo recíproco que assim fosse.
Além da vida que tínhamos juntos e da história que construímos, é claro, porque, seja qual a força da atração que une um homem e uma mulher, não há união que dure se os dois não construírem juntos a sua própria história.
Aliás, para mim, esta é toda a história.