Homem de bem.

Manso, diziam que sabia ouvir.

Paciente, jamais saía do sério.

Complacente consigo e com a vida era.

Tinha sorriso fácil, modos de príncipe, uma pitadinha de sedução.

Não gostava de espelhos.

Temia ver mais do que suportaria sua alma pacifista.

Espelhos são perigosos, podem revelar um olhar estranho, um canto da boca mais elevado, um perpassar leve de expressões que não queria ver.

Assim vivia, no conforto do lar, aposentado, chinelos e a eterna bermuda surrada.

- Ah, essa juventude de hoje, costumava dizer, tudo perdidos, no meu tempo a gente se divertia de verdade.

Só lembrava o dia em que resolvera enterrar seu passado no quintal da casa numa noite qualquer.

Cavou muito, pois que havia muito a ser esquecido.

Contudo, com a paciência característica, foi até o final.

Ali enterrou desafetos, maldades que fizera contra os seus mais queridos familiares e amigos, pequenos e grandes delitos cuidadosamente ocultos da sociedade.

Nunca entendeu o afastamento de todos, mas feito o ritual de apagar o passado, se considerou livre.

Doravante seria o homem de bem. A maldade corroía o fígado e todas as entranhas, mas não aparecia, conseguia disfarçar com um sorriso e uma fala mansa.

Viveu então feliz até encontrar sua esposa, linda e dedicada.

Foi numa noite de intensa chuva, enquanto ele olhava o futebol na TV, carinhosamente ela chega atrás dele no sofá e coloca um espelho na frente do rosto do marido, pois achou estranha a casa sem espelhos.

Quando inadvertidamente ele se viu finalmente, não pode suportar o monstro que o habitava.

Embora a chuva intensa com vendaval na rua, sai porta afora procurando respirar.

Triste decisão.

A chuva provocara uma inundação na terra já molhada e eis que o buraco que fizera, abriu-se feito boca desdentada e fétida e todos os restos de si que ali jaziam putrefatos vieram à tona cobrindo o corpo do homem já desmaiado no chão.

Morreu coberto com seus detritos.

Jeanne Geyer
Enviado por Jeanne Geyer em 06/09/2020
Código do texto: T7055876
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