cORONA FICTION: O monstro do Lago Paranoá

O monstro do Lago Paranoá

Os primeiros a enlouquecer foram os velhos. Não pela presença da morte, que, por terem vivido muito, não se assustaram com ela. Mas porque não suportaram conviver confinados com seus filhos adultos. E o presidente editou um decreto permitindo que os filhos homens possam continuar recebendo suas pensões, desde que sejam filhos de militares.

os próximos acometidos da Covid-Cr (que significa Corona Virus Craze) foram os cachorros. Isso assustou a todos, porque não era agosto ainda, não fazia nenhum sentido. Sendo assim, Olavo de Carvalho defendeu a morte deles a pauladas por ser sinal de mau agouro. (Escreveu um tratado sobre o tema: "Do mau agouro dos canídeos", editado pela Terraplana Editora)

Depois foram os jovens de Brasilia,

que, por não terem praia, e ficando confinados sem maconha e sem LSD,

começaram a pular pelas janelas

em um movimento combinado pelo aplicativo BSBdaDepressão.

(no celular de um deles estava tocando a música Fábrica, do Legião Urbana.)

Os próximos na fila da loucura foram

os padres jesuítas, que, por causa do esvaziamento das igrejas,

nao tendo a quem dirigir seus sermões -

e não sabendo fazer lives -

viram a falta de sentido em viver sem pregar.

(O único sobrevivente foi o padre Marcello de Jesus, que já transmitia seus sermões em shows do Rock'n Rio. E não se importou em fazer as lives - já dominava o ambiente virtual.)

Foram, na sequência, os ministros do governo central. Ninguém conseguiu explicar essa conexão com o Covid-Cr. Apesar da suspeita de suicídio, especula-se que foram envenenados pelo presidente. (A polícia não encontrou em seus smartphones o aplicativo BSBdaDepressão, o que fortalece, segundo o delegado do caso, a tese do envenenamento.)

Os médicos também não escaparam. Mas eles foram direto ao suicídio sem passar pelo estágio da loucura. Encontraram no jaleco de um infectologista de São Paulo

um bilhete escrito:

"alguns achando bárbaro o espetáculo,

preferiram (os delicados) morrer."*

(O presidente em sua live semanal

disse que a culpa era dos médicos cubanos, sem, contudo, apresentar provas.)

E assim foram traindo a morte, exterminando-a, um por um, diversos grupos sociais. Entristeceram e confundiram a morte, antecipando-se a ela e à sua determinação, fragilizando sua auto-confiança mortífera.

No fim de 17 tenebrosos meses, tudo restituiu-se à normalidade, e isso foi logo depois do ato final que coroava a pandemia, que foi o presidente da Liga dos Milicianos encher uma câmara de ar de pneu de caminhão, entrar no lago de Brasília e lá permanecer, alimentando-se sabe-se lá de que misérias, e nunca voltando à margem.

Um camelô do Feiraguay instalou um binóculo pra quem quiser vê-lo mais de perto. Tem uma placa onde se lê: "O monstro do Lago Paranoá."

* Os ombros suportam o mundo (fragmento). Carlos Drummond de Andrade.

Alves Grapiuna - contista, cordelista e poeta.