Coisas a fazer no meio da madrugada

Ele não queria ter que sair numa noite como aquela, mas o dever era maior do que o conforto pessoal. Calçou luvas de couro, colocou uma parka forrada com capuz sobre a camisa de mangas compridas, jeans sobre ceroulas de flanela, e botas pesadas nos pés calçados com meias grossas de algodão. Na cabeça, ainda acrescentou um gorro que lhe cobria as orelhas. Apanhou o bastão de trilha com ponta de ferro, colocou a mochila nas costas e abriu a porta da casa, antes de acender a lanterna que guardava no bolso da parka.

Lá fora estava um breu só. A neve caía, silenciosamente, e depois de fechar a porta atrás de si, ele afundou nela até os tornozelos. Felizmente, pensou, o vento não estava forte ou a sensação térmica seria ainda pior do que a que estava sentindo. A passos lentos, mas determinados, tomou o rumo da estação ferroviária, distante dali cerca de dois quilômetros. Volta e meia, consultava a bússola de pulso para certificar-se de que estava no caminho certo. Até ali, tudo bem. Não podia correr o risco de errar o trajeto; a madrugada ia pelo meio e coisas estranhas costumavam ocorrer nas trevas, principalmente no auge do inverno.

O vilarejo estava praticamente desabitado, e àquela hora, mesmo nas casas onde ele sabia que havia moradores, não se via sequer uma luz acesa. Só pôde desligar a lanterna na rua principal, onde havia iluminação pública funcionando. A estação ferroviária surgiu mais adiante: um casarão antigo e comprido, com telhado vermelho e duas torres brancas, uma em cada extremidade. Subiu os degraus que levavam até a plataforma e bateu na porta do escritório do chefe da estação. E novamente, até que a porta finalmente foi aberta por um homem de rosto vermelho, vestindo camisa de dormir e gorro.

- Julius! Sabe que horas são?

- Três e meia da manhã, pelo relógio da torre da estação - retrucou secamente o recém-chegado. - O que diabos houve com o trem das 23 h?

- Saiu às 23 h, como sempre. Vai ficar aí parado? - Indagou, fazendo um gesto para que entrasse.

Julius entrou e a porta foi fechada. Sentou-se numa cadeira à frente da escrivaninha do chefe da estação, e este por trás da mesma.

- Vocês deixaram uma passageira. Isso é inadmissível, Mattias - acusou Julius, dedo erguido.

Mattias lançou-lhe um olhar surpreso.

- Como assim? Não havia ninguém para voltar hoje... Thea veio pessoalmente me avisar disso.

- Thea veio aqui? - Indagou Julius, subitamente alerta.

- Como acabei de lhe dizer. Me disse que a tal pesquisadora, Sabrina, iria dormir na sua casa.

- Diacho! - Exclamou Julius erguendo-se e dando um murro na mão. - Ela nos enganou!

Saiu em disparada porta afora, sem sequer se despedir.

Enquanto corria pela neve fofa, ia pensando: o que mais poderia dar errado naquela noite? Ao dobrar uma esquina, a luz da lanterna refletiu-se em dois olhos imensos de cor laranja, que pareciam flutuar a quase três metros de altura em meio à escuridão. Ele respirou fundo e ergueu o bastão, num gesto de defesa.

Em seguida, a coisa pulou sobre ele.

* * *

- Sabrina?

Sabrina estremunhou ao ouvir o próprio nome. Não sabia a quanto tempo a estavam chamando, nem onde estava. Ah, lembrou, no quarto de empregada da casa de Julius.

Mas não era ele quem estava chamando. Já eram sete da manhã? Tudo ainda estava escuro e parecia não ter dormido nada!

- Um momento! - Gritou.

Apanhou as roupas que havia colocado nas costas da cadeira e vestiu-se apressadamente. Só então, abriu a porta e, para seu espanto, deparou-se com a bibliotecária, Thea. Ela estava segurando um lampião de querosene e sorriu de modo reconfortante.

- Sono pesado, hein? - Gracejou.

- Desculpe... que horas são? E você mora aqui também? - Indagou.

- São três e meia da manhã e não, eu não moro aqui. Precisamos sair. Você corre risco de vida.

A informação alarmante fora dada de modo praticamente casual, como se Thea estivesse falando da previsão do tempo.

- Onde está o Julius? - Indagou apreensiva Sabrina.

- Saiu. E você precisa vir comigo antes que ele volte.

Diante da expressão de assombro de Sabrina, acrescentou:

- O risco à sua vida provém dele.

- [02-08-2020]