LOUCURA PARADISÍACA ENTRE OS PIRAHÃS


O lugar era lindo, na floresta de um imaginado país distante.  Tão interessante, que eu até pensei ser ali o paraíso. De repente - chega de deslumbramento! -, desesperei-me porque não entendia a língua nativa dos passantes. De nada adiantaria tentar um diálogo com alguns deles. Olhavam para mim, às vezes paravam com intenção de ajudar-me, mas logo seguiam os seus caminhos, obviamente por não entenderem bem os  meus sinais. Pouco a pouco, a beleza do lugar vai se desfazendo. Seu brilho natural, ao contrário do que eu esperava, não foi substituído pela claridade artificial noturna dos outros lugares por onde eu já havia passado. Qual passado?...
Tudo ficou escuro, ou obscuro. Tanto que, em algum instante, temi que estava cego, nenhum raio de luz incidia em meus olhos. Impossível ver a mim mesmo ou lembrar de onde eu havia partido.  Procurei o meu ego, o porquê de aquele sentimento de prazer ter dado lugar a um desencanto incontido, afetando a minha personalidade: o meu humor, o meu temor... Tão somente porque a noite, sem lua, sem edifícios, sem automóveis nas ruas (...), se me mostrara  naturalmente pura, escura.  Desejei fugir de uma situação real. Aquela floresta deveria ser imensa. Nem dava pra ver o céu, se nublado ou estrelado. Tampouco o Sol, cujos raios não penetravam toda a folhagem.    Fugir, sim, por me sentir um simples substantivo comum, não personativo, singular, sem lugar no vocabulário dos que estranhavam a minha presença.  Acreditei, ou deduzi, ou adivinhei, que nenhum ser humano é capaz de sentir-se confortável quando se vê sozinho e incomunicável em um lugar estranho, mesmo que esse lugar seja o paraíso.  Quis ligar para algum amigo, ou parente... Valeria a pena?!...  Pensei...  Qual amigo? Qual parente? Valer-me-ia dos nomes salvos no celular. Susto!... Celular quebrado no meu bolso. Certamente, se inteiro, já estaria descarregado e, mesmo assim, não captaria sinal naquela região insólita. Assim deduzi, porque os meus visitantes, todos seminus, não portavam celular. Nudez... Comecei a ter saudade da mulher amada. Que mulher?!...  Eu sabia da sua existência, mas o nome me escapava da memória. Ligaria para, inicialmente, pedir- lhe perdão, admitir que não mais a feriria com os meus "et coetera". Faria um convite para a gente se reencontrar. Sim, porque fui abandonado!... Onde?... Aí, sabendo que, mesmo na escuridão, os nativos se acercavam (cuidavam) de mim - até assobiavam baixinho pra se comunicarem sem me incomodar -, adormeci. Só a bela manhã me despertou.  De repente, o som uníssono e incomum do acordar na floresta me fez voltar a adorar aquele lugar exótico. Que lugar?... Nem adiantava perguntar.  Sem me comunicar, claro, eu estava só e precisava reagir. Tentei erguer-me. Não consegui andar. Quebrara o tornozelo nalguma queda. Acenei pedindo remédio. Trouxeram-me comida crua: milho seco no sabugo; peixe e batata ressecados ao Sol...  Fiz de conta que comia.  Sem me mover e faminto, creio que no terceiro dia não pude deter uma hipoglicemia... Desmaiei.
Acordei na cama de um hospital. Equipes de busca, em helicópteros, haviam localizado os destroços do avião em que eu viajara. Constataram que havia sobreviventes.  Auxiliados pelos nativos, logo me localizaram.  Ufa!...
Dois anos de terapia cognitiva.  Pouco a pouco, recordei nomes e fatos, só não o porquê de eu ter viajado sem a minha muleta preferida: minha santa mulher, que, desolada, já havia chorado sua provável viuvez. 
Foi ela quem me informou ter sido encontrado sob os cuidados de uma estranha tribo - Pirahãs -, que vive na jurisdição de Humaitá, região sul do estado do Amazonas.  Talvez levássemos uns dez anos para aprender o seu idioma, constituído apenas de três vogais e oito consoantes. Um idioma tonal. Como exemplo, uma mesma palavra pode significar "amigo" ou "inimigo", conforme a entonação. Verbos só no presente. Alguma ocorrência do passado somente é aceita se o narrador comprovar que dela participou. Não acreditam em nada que não possam ver, sentir ou provar. Dessa forma, não acreditam em espíritos, espírito supremo ou divindade criadora. 
Sem raciocínio matemático e sem uso de numerais, sua denominação numérica não vai além de três elementos.  Por isso, não contam o tempo. Absolutamente nada é contado.  Uma mesma palavra, pela entonação, dá significado à juventude, idade adulta ou velhice - números que adoramos no começo e que nos incomodam no final...
Nos anos setenta, o missionário norte-americano  - Daniel Everett - conviveu com os Pirahãs com o firme propósito de os evangelizar. Pragmático, escreveu a bíblia no seu sintético idioma. Tudo correu bem até o ponto em que toda a tribo perdeu o interesse pelo Jesus que Everett nunca vira de fato.  Para quem não se apega com o futuro, a fé é irrelevante. Os 450 membros dessa tribo, acostumados só com a situação presente,  vivem incrivelmente felizes. 
Se a humanidade copiasse a ideia,
comeria em completa harmonia
o Pão Nosso de Cada Dia,
embora inconscientemente ateia.

Jurei à minha "muleta" que, nalgum dia do futuro,  voltaria lá, com ela, tanto pra esquecer os "et coetera" do passado quanto para nos convertermos.