O BRILHO DA LUZ QUE ME APAGOU

 
     Abri o editor de texto... passei alguns minutos encarando a tela branca do computador. Eu sabia o que escrever, mas me faltava coragem. Olhei a foto dela no porta-retratos, cuidadosamente colocado na escrivaninha. Eu sabia que ela iria querer isso. Aliás, esse sempre foi o seu desejo: ter sua história narrada por mim. O meu egoísmo, no entanto, não me deixava compartilhar os seus segredos. Queria guardá-los para mim, apenas para mim.
            Saber que eu era a única pessoa que conhecia seus segredos trazia-me um sentimento de intimidade, de proximidade com ela. E eu não queria perder isso. Olhei novamente a foto dela a me encarar, não tinha jeito, eu teria que escrever. Ela sempre foi muito convincente. Nunca precisou falar uma palavra para convencer-me a fazer a sua vontade, bastava me olhar que eu obedecia. Não tinha como fugir do seu olhar congelado na fotografia.
            Maria Luz da Silva Amarantos nasceu em... parei. Não parecia justo começar contar a sua história com seu nome e seu nascimento. Ela mesma não gostava desse nome enorme, pedia a todos que a chamasse apenas de Luz. E realmente esse nome traduzia quem ela era: uma verdadeira luz a brilhar nesse mundo, na vida de quem teve a sorte de conhecê-la. Não contive as lágrimas ao recordar-me que não a tinha mais do meu lado.
            O que mais me doía era saber que vivemos tão pouco tempo juntas: apenas três anos. Enxuguei as lágrimas que molhavam meu rosto e decidi escrever. Eu saberia exatamente como começar sua história, pois para narrar a vida de Luz, era preciso senti-la. E cá dentro de mim, ela estava enraizada, dando-me forças para continuar a vida sem ela. Não. Sem ela, não. Com ela sempre, era impossível esquecer aquele brilho que me iluminou.
            Eu sei que estou enrolando para começar a escrever, mas é que tenho medo. Assumo, estou tremendo. Medo e vergonha, é isso que sinto agora. Quem irá se interessar pela história de uma “sapatão”? Sinto-me culpada por pensar assim, mas é que eu nunca tive a coragem que Luz teve: de encarar a vida com otimismo e aceitação. Não sou preconceituosa. O que sinto é preocupação. O que as outras pessoas irão pensar ao ler a história dela?
            Talvez eu esteja errada. Isso não impede que eu sinta medo de escrever sobre minha namorada. Minha namorada morta, eu me lembro, e o coração acelera. Eu devo isso a ela. Quantas vezes ela me pediu que narrasse os acontecimentos de sua vida, tinha orgulho de sua história, de suas superações. Enfrentou muita coisa difícil em seus dias, mas agora ela está morta. Um bêbado irresponsável a atropelou enquanto ela atravessava a rua.
            Retorno ao editor de textos em branco, e novamente começo a escrever:
- Era um tarde de sexta-feira, Luz voltava apressada do supermercado. Iríamos receber alguns amigos para o jantar. Ela fez questão de fazer compras. Mas ao atravessar a rua, um carro veio em alta velocidade e a jogou contra o porte... –
            Fechei com muita força a tela do notebook. Peguei o porta-retratos com a foto dela e o pressionei contra meu peito. E chorei. O telefone tocou e eu atendi. Mais uma pessoa preocupada com o meu isolamento. Dois meses trancada no apartamento. A pessoa no telefone era Marina, nossa melhor amiga. Quando ela perguntou se eu estava bem, respondi com outra pergunta, querendo saber se ela se lembrava de como eu e Luz nos conhecemos. Claro que se lembrava, ela mesma havia me apresentado a Luz.
            - Lembra quando a mãe de Luz deixou de falar com ela? - Marina dizia que sim, aquela conversa da gente não era a primeira. Depois do acidente, eu só falava de Luz, tentava me apegar àquelas lembranças na esperança de ter ela sempre comigo. E contava que mesmo a mãe não falando com ela, Luz ia todos os domingos visitá-la. Ela era realmente um ser humano magnífico.
            A ligação de Marina tinha um motivo, além de querer saber como eu estava, ela me convidava para ir almoçar com ela naquele dia. A minha resposta foi a mesma que dei a todos os seus outros convites. Não queria sair de casa. Eu precisava achar um jeito de manter Luz ao meu lado. Coloquei o telefone na mesa. Em seguida abri o guarda-roupa, onde guardava as roupas dela. Sempre limpas.
            Escolhi a calça preta e a blusa cor de prata que ela adorava usar e coloquei sobre a cama. Lembrei-me de quase todas as ocasiões em que ela vestiu aquela roupa. Combinava perfeitamente com o seu cabelo curto. Cabelo curto... diante do espelho, já no banheiro, olhei o meu cabelo longo, abaixo dos ombros. Não combinava nada com o meu rosto. Peguei a tesoura e mecha por mecha fui cortando, até perceber uma leve semelhança com o corte de cabelo de Luz.
            Na sala, já vestida com a calça e a blusa dela e o cabelo levemente semelhante, senti o seu toque em meu corpo. Abri então uma garrafa de cerveja, da marca que ela sempre bebia, tomei um, dois, três goles... e ouvi as gargalhadas dela. Ela estava ali, não comigo. Estava ali, em mim. Comecei a imitar o seu andado, seus trejeitos e a cada parte dela que eu reproduzia, mais presente ela se fazia. Tomei outra cerveja, e outra, e outra...
            Estava ouvindo sua música favorita, comendo seu queijo e dançando como ela.  Estávamos juntas novamente, como no momento em que nos conhecemos. Rimos, dançamos e cantamos alto a nossa música favorita. Com a Luz do meu lado, novamente senti alegria. Fui até ao quarto e levantei a tela do notebook. Agora eu podia escrever a história dela, assim cheia de alegria e felicidade. Sem enrolação comecei a escrever:
            - Meu nome é Luz e eu não estou morta. Como poderia morrer e deixar sozinha o amor de minha vida. Sei que vocês estão ansiosos para saber mais de mim, por isso peço perdão. Vou respeitar o desejo da minha namorada e deixar com ela, apenas com ela, todos os meu segredos –
            Senti um embrulho no estômago. A mistura de queijo e cerveja não me caiu bem. Fui até ao banheiro e vomitei muito. Lavei o meu rosto sujo e fedido. Ao ver a imagem refletida no espelho, agradeci a Luz por ter me liberado da obrigação de escrever sua história. E concordei com o novo acordo, de viver a vida que a morte não permitiu que ela vivesse. Sai do banheiro imitando o seu andado. Preciso mostrar ao mundo que ela continuará viva, nem que para isso eu tenha que morrer.
Nilson Rutizat
Enviado por Nilson Rutizat em 25/07/2020
Reeditado em 27/07/2020
Código do texto: T7016052
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