229 - O Refúgio
Usa-o como quiseres. Era longe de tudo. Isolado. Encravado entre quintais com um logradouro estreito e, exactamente por tudo isso, lhe agradou a ideia. Exilava-se assim, desligava-se de ruídos, poderia encontrar-se, trabalhar mais empenhado, escutar o seu silêncio ou a música que escolhesse. Gradualmente foi levando coisas para lá: o sofá antigo, a mesa da perna quebrada, o lavatório e o jarro, telas inacabadas, a caixa de tintas. Improvisou tudo o que, ali, não tinha, recolheu a estante cujo defeito foi ter passado de moda e preencheu-a com livros secretos. Aquele espaço passou a ser uma fortaleza, um lugar seguro, um não-estar nem existir. Passou tempo que não foi contabilizado e entre si e o fugitivo em que se tornou estreitaram-se relações. Entendiam-se sem palavras, havia profunda harmonia. Olhando uma vez com mais atenção para a parede viu sinais de humidade que denunciavam entrada de chuva no telhado. Os olhos pararam no forro já destruído, no agitar de restos de estuque e tinta por um vento que, antes, não havia. Seguindo a trajectória das alterações verificou que faltava uma parede aquele lugar, que bruscamente deixara de ser recatado, seguro, aprazível. O aparelho de rádio a pilhas calara as notícias e barulhos de fim saíram dos seus restos de energia. Não se lembrava de ter chave, não lhe ocorreu trazer nada do que ali estava. Saiu para a vida anterior cheia de problemas. Sem saudade.