DIÁLOGO "PENOSO"

DIÁLOGO "PENOSO"

Ali estava eu, mais um dia -- uma tarde, melhor dizendo -- sentado no mesmo banco daquela praça, como quem desfia imenso rosário sem tempo para acabar. Dez anos e onze meses e 3 semanas a olhar o mesmo céu, as mesmas flores, as mesmas pessoas, crescendo ou envelhecendo à minha vista. E lá vinha, mais uma vez, aquele bando de pequenos seres para bajulá-lo, como sempre fizeram. Fossem maiores se tornariam, talvez, "pivetes" ridículos a assediar quem visitasse a praça. Surgiu à frente o que seria o chefe, balançando a cabeça como todo bom malandro, o corpo atarracado acompanhando. Me olhou com ar interrogativo, a meia dúzia de amigos (quem sabe, até parentes) a seguí-lo... tive a impressão de ouví-lo esbravejar, abusadamente:

-- "E então, palhaço, não vai nos dar nada hoje" ?!

A pergunta fez eco no meu nebuloso mar de lembranças e saudades, batucou qual pigmeu bândar na floresta de recordações que me mantinham vivo. "Acordei" irritado, esquecera sobre a mesa o pacotinho de guloseimas costumeiras.

-- "Vai dizer que nos deixará com fome ?! Nesses 10 anos, 11 meses e 24 dias isso nunca aconteceu" !

-- "Esqueci mesmo... e daí ?! Quer que eu faça o quê" ?!

Ouvi apupos da galerinha atrás dele, teria ouvido protestos, meu cérebro questionando se eu ouvira realmente um pombo falar, se eu respondera realmente ao "penoso".

-- "Como assim "E DAÍ"? Faça o que tem que fazer... vá comprar nosso milho, "pombas" !

MISERICÓRDIA... eu estava mesmo OUVINDO pombos, pior, FALANDO com êles, lhes respondendo. Olhei em volta para saber se alguém notara que eu "falava sozinho". A praça, bem frequentada aquela hora (umas 3 da tarde), nada percebera, afinal monologar consigo mesmo era direito de todo ancião, único direito, aliás. Mesmo assim, puz a mão na boca, para disfarçar:

-- "POMBAS", digo eu... pombas ! Vão pedir milho para outros aqui, não estou só eu na praça" !

Meu cérebro turbilhonava, as poucas células cinzentas sadias a me alertar que aquilo era loucura, o princípio dela, era preciso "dar um Basta". Levantei-me disposto a encerrar prematuramente meu lazer diário.

-- "Epa, vais aonde, covarde ?! Volte aqui, miserável" !

De pé, acelerei os passos, a fila de microgalináceos a me seguir gritando "estamos com fome !!!" Ainda olhando para trás cruzei a pista dupla da Avenida Atlântica, rumo ao "calçadão" salvador, lá na praia. Soou um estrondo, me vi deslizando no asfalto como caixa de papelão vazia, arrastada pelo vento. Acordei num hospital, dias depois, vendo o "céu quadrado" pela única janela do quarto particular, me pago por amigos. "Pontinhos" multicores se mexiam no peitoril, gritando em coro:

-- "Queremos comer, queremos comer ! Patife ! Safado" !

Aquilo era demais... dei um berro de filme de terror e enfermeira solícita me acudiu ligeira. Assustados, os pombinhos se dispersaram, sumindo:

-- "Mocinha, aqueles pombinhos na janela estão me xingando... tire êles dali, pelamordedeus" !

A jovem fechou a janela e cerrou as cortinas, vedando-me o pedaço de azul da manhã em festa. Ao médico no corredor confidenciou, apreensiva:

-- "O "tiozinho" do 314 está bem mal... pensa que é um pombo" !

-- "Manda pro PINEL assim que melhorar, lugar de maluco é lá, êles "darão um jeito" nele" !

"NATO" AZEVEDO (em 17/julho 2020, 6hs)