OS OLHOS DE SABRINA

Algum tempo atrás fui visitar o mosteiro de São Bento.

Ainda na universidade o professor havia me recomendado, como parte das atividades acadêmicas. Mas não fui tão solícito, conforme necessitava.

Na época estava embevecido em fortes sentimentos. Deixei de cumprir com a indicação docente e, assim, a indisciplina resultou numa falha que por pouco não me prejudicou. Se as observações sacras, sobretudo, implicassem rigorosamente nas avaliações daquele período letivo, ou o professor, com sua grande presteza não encontrasse outra alternativa, certamente eu teria tomado bomba.

Era mais um dia cinzento na Pauliceia e tudo contribuía para potencializar a nostalgia que teimava em enuviar minha cabeça. Uma intermitente garoa fininha ajudava a esfriar minha alma, enquanto media os passos sobre as calçadas do centro velho paulistano.

Todo cerimonioso adentrei na suntuosa edificação. Passei a observar os aspectos arquitetônicos, o estilo românico, a música gregoriana e, a passos paulatinos, em forma de reverência dos fiéis que adentravam no templo.

Consideravelmente apático passei a olhar os altares.

Num nicho muito bem ornamentado e sobre um pedestal suplantando anjos, a santa ostentava em sua formosura canônica.

Nossa Senhora da Assunção postava-se deslumbrante. Suas feições demonstravam máxima candura. A boca fina, os olhos azuis, a face rósea inspiraram em mim um sentimento herético, mesmo que, no fundo, uma sensação mais forte me arrastasse feito um monstro.

Fiquei absorto a fitar. Eu que nunca tive vocação para a adoração estava mentalmente postado de quatro ante a beleza da santa.

E, de repente, uma mágica transmutação invadiu meu senso.

Nossa Senhora de Assunção tinha desaparecido do nicho. Era Sabrina quem ocupava seu lugar, com os olhos do mar de Boiçucanga, a boca proeminentemente lasciva a pedir meus carinhos e meu beijo. Enxergava sua nudez por baixo do manto. Via sua audácia em se exibir em pelo para meus amigos. Embriagada, enlouquecida, totalmente entregue à paranoia.

Ela abandonava a aura de Nossa Senhora da Assunção. Perdeu a candura e a docilidade, tornou-se uma mistura do sagrado com o profano. Entupiu-se de uísque. Despiu-se na frente dos meus amigos. Agrediu os incautos, ofendeu a minha honra. Os animais urbanos ali presentes festejaram desavergonhados, em alarido. Eu apenas me retraí.

Depois daquela triste cena Sabrina ficou dois dias sumida. Fiquei aflito e só aí percebi que nutria por ela uma desvairada paixão.

Para satisfazer os anseios de meus pais eu tinha ido estudar História da Arte. Eles pretendiam me formar um famoso artista plástico, de modo que levasse a educar as pessoas até fazê-las se dar conta do mundo real, dos números, das cores, das formas.

Naquele momento toda aquela soma de atributos me envolviam à paixão que eu cegamente nutria por Sabrina.

Nossa Senhora da Assunção, com suas belas e bem delineadas formas, pensadas milimetricamente pelo escultor eram os contornos do corpo de Sabrina.

Cogitei se Sabrina era perfeita apenas dentro da minha exaltada mentalidade. O artista manipulou o cinzel e a espátula e eu não conseguia domar minhas próprias ideias.

Queria moldar a estátua de Sabrina de modo a caber na caixa dos meus desejos. Fazê-la minha santa e tê-la para sempre no altar de minha paixão.

Joel de Sá
Enviado por Joel de Sá em 15/06/2020
Código do texto: T6978136
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