203 - A Cigarra
De repente, como a cigarra de Matsuo Basho que se cantou toda e apenas deixou de si a casca, também ele se livrou do passado e pesos, de velhas contas, de coisas que, bem lembradas, o fariam chorar. – É tempo, José, de sair sem nuvens negras ou brancas, sem rabos de palha, sem tantos pedaços de coisas feitas que ninguém aprovou. E, assim pensando, desmanchou o arquivo e, jogando ao ar os papéis, as notas, os recortes de jornal, os desenhos e tudo o que ali se guardava, com datas e indicações explicativas em rigorosa ordem cronológica, era reposto sob nova regra: primeiro os documentos que apanhava no ar, mais perto de si, no chão onde no centro da carpete se sentara. Claro que ela não soube porque quando voltou do trabalho estava tudo no mesmo lugar, a casa limpa e arrumada, a cama feita. A um olhar mais arguto não viu o chapéu no bengaleiro, sentiu ausente a samarra e o cachecol das listas. No roupeiro estava tudo como sempre. Saiu com a roupa do corpo e não demora, pensou, aliviando-se dos sapatos de salto alto e abrindo o fecho da saia. Muito depois viu, junto ao molho das chaves, sobre a mesa da cozinha o recado escrito com a sua melhor letra: Cansei-me. Vou e não volto. Paga tu as contas e a renda da casa.