Minha Lavadeira (Homenagem)
Eu era "residente", “crônico" ou "mexilhão". Estes são os termos náuticos aplicados aos marujos que residem a bordo do próprio navio em que trabalham, quando este está sediado.
O meu ficava no cais do Arsenal da Marinha, na baia da Guanabara.
As lavadeiras tinham a permissão de adentrar ao Arsenal às terças e quintas feiras e irem até o cais dos navios para transmutar as roupas dos marinheiros ditos crônicos.
A minha lavadeira, que não era de faltar, já fazia duas semanas que não aparecia e eu estava simplesmente ficando na "onça" de roupas limpas. Todos tinham seus respectivos endereços para qualquer eventualidade como, por exemplo, uma partida de emergência do navio.
Quando soube que sua falta era por motivos de saúde resolvi "baixar terra" e ir a sua casa. Era na antiga Favela da Maré. À época famosíssima por seu nível de miséria. Hoje as favelas são famosas por seus níveis de violência. De qualquer modo nunca havia estado antes ali nem em qualquer lugar como aquele ali. Confesso, fiquei estarrecido ante o quadro.
Eram as casas habitações tipos palafitas, paliçadas sobre a lama fétida de antigos manguezais da baía da Guanabara. Caixotes tipos três-por-quatro desajeitadamente suspensos sobre a lama. Com piso de tapume e anteparo misto de tábuas, zincos e papelões.
O quadro ficava mais desolador porque a maioria daqueles moradores era de lavadeiras, as quais tinham que entregar, incondicionalmente, aos clientes, roupas limpas e cheirosas.
Aquela favela fazia me lembrar do martírio da cruz. Por ter sido a cruz um tipo de pena onde a vítima era elevada do solo em sinal de desprezo pela sociedade. Também ali, na Maré, a vítima não tinha direito nem de tocar na lama fétida do solo como propriedade.
Uma cama de solteiro (c0m uma idosa doente) num lado da parede, fogão no outro e mesa no meio dividiam o três-por-quatro da lavadeira em "quarto", "sala" e "cozinha." No canto da parede, um buraco sobre o tapume dava indicativo de sanitário cujos dejetos já caiam diretamente na lama. Depois disto, tudo eram roupas. Roupas secas sobre a cama, molhadas sobre a bacia, passadas sobre a mesa e roupas sobre as roupas que eram as esticadas sobre varais dentro da própria casa, por não haver terraço nem varanda, mas tão somente lama. Cruel.
O mais difícil mesmo, de todo aquele trabalho de roupas, era o de se conseguir a matéria prima, água. Esta além de ser obtida “por favor”, era transportada em galões sobre a cabeça e sobre um frágil estrado de madeira.
E o mais curioso disto tudo é que nós, em sociedade, nos acostumamos sujar nossas roupas nos prazeres dos excessos, mas não as estamos lavando em casa. Pelo contrário, as entregamos a essas vítimas da sociedade e exigimos que cada, mesmo em sua escassez de recursos, nos entregue roupas limpas e perfumadas.