O AMIGO DO CURUPIRA - capítulo 2

O AMIGO DO CURUPIRA.

Lendas Amazônicas

Parte 2

Autor: Moyses Laredo.

(CONTINUAÇÃO CAPÍTULO ANTERIOR)

... criatura media perto de 1 metro e pouco, tinha pelos em todo corpo, que pareciam os de mucura, muitos ralos e espaçados, nas costas descia-lhe uma crina avermelhada encrespada que afunilava até a sua calda curta, em suas mãos contei somente quatro dedos, suas unhas eram como garras da preguiça, bem longas, baixei a vista e observei as pernas arqueadas e os pés com o calcanhar para frente, do jeito como todos diziam, até duvidei como ele conseguia andar. Ficamos a nos olhar sem reação, não sabia o que aquela coisa ia fazer comigo, mas, me pareceu querer dizer algo, de repente se virou e começou a andar e parar, a cada parada, se virava pra ver se eu o acompanhava, seu andar estranho me fez olhar seus pés, e vi, eram de fato virados pra trás, e que sua canela nascia bem no meio do peito do pé, diferente dos humanos que a canela nasce no calcanhar. Ele continuou o seu caminhar, sempre parando aqui e acolá, entendi e passei a acompanhá-lo, mas, guardando uma certa distância, andamos muito tempo, varamos a mata na mais completa escuridão, eu focava na calda curta dele para poder acompanhá-lo, devia saber por onde me levava, temia por mim, que a essa altura da noite tinha perdido totalmente a noção de orientação, mas, não tive opção, pois se corresse ele facilmente me alcançaria, por isso decidi segui-lo até onde ele fosse, afinal, como disse, o bicho não me pareceu mau. Depois de um par de horas a bom andar, finalmente paramos perto de uma formação rochosa, que parecia ser um morro pequeno, mas bastante alto. O Curupira parou diante de um toco de pau caído, eu fiquei em pé, bufando de cansado, pensei comigo, e agora, o que será que ele vai querer fazer?... então, de repente, deu um salto e alcançou uma alça do cipó caapi bem no alto, e deu uma balançada, e na primeira, já alcançou a entrada da fenda, no alto da rocha, Ah!... então é assim, que ninguém consegue seguir seus rastros, ele “voa” nos cipós, que coisa interessante, tudo para despistar seus perseguidores, por isso que dizem que ele “some das vistas da gente”, e foi se dirigindo para a entrada da dita fenda, parou como se me esperasse, ainda queria que eu o seguisse, eu fui, tive muita dificuldades de escalar a rocha, que ele, de um salto alcançou facilmente. As pedras lisas escorregavam, mas com dificuldades continuei, como já estava no fogo, tinha que seguir adiante. Ao chegar em cima, vi que a fenda na rocha, se abria para uma enorme caverna em forma de um arco ogival alongado, daqueles que se vê nas igrejas medievais. No interior muita escuridão, andamos um bom pedaço dentro daquela obscureza, a cada passo, o salão se abria, do teto caiam enormes estalactites que o foco da lanterna os tornavam amedrontadores, às vezes, se uniam com suas correspondentes estalagmites, minha sorte é ter trazido a lanterna, eu nunca entraria ali sozinho, nem que fosse buscar ouro, mas segui o bicho, que ia à minha frente com o seu andar peculiar, tombando a cada passo, para um lado e para o outro, depois de um certo tempo, parou, levantou a cabeça e emitiu uns guinchos finos que ecoou caverna a dentro, quase me ensurdeceu, houve uma revoada de morcegos, depois, acostumei a vista e vislumbrei a razão do sibilo, se tratava de outro Curupira, este deitado sobre uma laje de pedra, onde a caverna se abria como um imenso salão, próximo a pequeno riacho de águas cristalinas, o segundo Curupira já de uma estatura maior, deveria ser um adulto, mais uma vez pensei, será que ele me trouxe aqui pro outro me comer? Todos nós temos uma irresistível tendência para pensamentos negativos. Percebi que o animal não se movia e gemia muito, também vi que havia sido preso numa armadilha de ferro, do tipo boca de lobo (arataca) para ursos e que com sua enorme força, havia quebrado a corrente que prendia a armadilha à uma árvore, acontece que não sabia desarmar o mecanismo da trava, e os dentes daquilo estavam enterrados em sua perna, felizmente o processo de destrava é simples, dependia do uso das duas mãos e com a ajuda fundamental dos dedos opositores. Me aproximei muito receoso, temia sua reação, afinal ia tocar na parte mais dolorida de sua perna, tinha experiência com o meu cão que chegou a me desconhecer quando foi atropelado e quebrou a perna. Assim que o levantei, acho que dei um mal jeito e ele tascou uma dentada de leve na minha mão, mas foi sua reação instintiva. Com muito cuidado, tocando uma coisa de cada vez, fui lentamente me aproximando da perna doente, sentia o bafo da ferida, já estava infeccionada, ao me aproximar mais, percebi que o cheiro partia do próprio Curupira. Tremendo de medo, ainda muito assustado com tudo aquilo, segurei a lanterna com a boca e pressionei o mecanismo, no lugar certo e com força, finalmente a trava desarmou, soltou-lhe a perna, ele deu um uivo gutural bem forte e se sentou, passou a lamber vigorosamente o local da ferida, mas e agora? ... que está livre será que vai me atacar? Lembrei-me do bornal e retirei o fumo e a cachaça, e lhe ofereci, que se virou para ver o que era, esticou a “mão” pegou minha oferta, cheirou e a deixou de lado. Fiquei travado de medo, será que tinha gostado? ...Imagine, eu estava sozinho dentro de uma caverna com dois Curupiras, sem a menor noção de onde estava e sem saber o caminho de volta?...em seguida a reação dele foi a mais simpática possível, se esgueirou como fazem os cães sabugueiros quase arrastando a barriga na pedra, e veio cheirar minha mão, deu umas fortes lambidas, então, pude examiná-lo melhor, suas cores eram mais acentuadas do que as do menor, a crina tinha quase um metro de comprimento e permanecia encrespada, o corpo coberto de pelos densos e pontudos, muito parecido na cor, com o dos macacos bugio-ruivo (macaco avermelhado), estava coberto de fungos esverdeados, o que lhe conferia a cor esverdeada predominante, que os índios lhes atribuíam, iguais aos que proliferam nos pelos das preguiças. Pude ver as enormes presas de perto, eram imensas achei iguais aos dos tigres dentes-de-sabre. No topo da cabeça, onde sua crina começava, havia um tucho de pelos avermelhados. Então era isso, não tinha dúvidas, me convenci que realmente estava diante do famigerado e temido Curupira, das lendas amazônicas, em carne e osso?... será que eu sairia vivo para contar minha história? Quem sabe é D’US, agora é esperar para ver o que acontece. Fiquei sentado do lado dele por algum tempo, completamente imóvel a vê-lo assear-se, lambia o ferimento avidamente, o interessante é que emitiam ruídos entre si, como se conversassem, iguais aos assobios que ouvi, em tons variados, achei que talvez não tivessem cordas vocais ou coisa parecida. Passada mais de uma hora, ali naquela indecisão, o menor, me encarou e de súbito se levantou, ficou quase ereto, no que permitia suas arqueadas pernas, acho que para dar-lhe mais equilíbrio talvez porque seu centro de massa se alterava, por causa dos pés para trás. Me levantei também, mas, tive o cuidado de me virar para ver se o maior não me atacaria pelas costas, para minha surpresa não o vi mais, tinha sumido de vista na escuridão do fundo da caverna. O Curupira menor, me levou direitinho sem erros, naquela escuridão da mata, até o local onde o avistei, e de lá, deu um assobio profundo, depois se escafedeu. No dia seguinte tive que voltar a cortar seringa, era o meu trabalho. Lembrei-me que os antigos também diziam que os Curupiras, eram chamados de guardiões da mata, não atacavam os seringueiros, porque os viam como amigos da floresta, diferente dos caçadores e madeireiros tidos por eles como predadores. Entendi finalmente porque havia sido escolhido por eles, confiavam em nós. Nesse mesmo dia, ouvi novamente o mesmo assobio, mais suave, sabia que ele me observava, não tive receios, ele passou a me considerar um “amigo” creio eu, imaginei quantas vezes, no silêncio das noites cortando seringa como sempre fazia, fui observado por eles. Ao me virar para retornar depois de passar para o balde maior, todas as tigelas pequenas, avistei que, na primeira seringueira da estrada, havia um cateto pequeno, abatido com uma só mordida no pescoço, esse era o seu presente em agradecimento, desse dia em diante, sempre tinha uma caça miúda para eu levar pra casa. Essa foi a estória do meu encontro, com um, não, mais com dois Curupiras.

Fiquei boquiaberto, escutei até a última palavra, senti que se real ou não o que me contou, me iluminou a cabeça com ricos detalhes sobre uma das maiores lendas Amazônica, esclareceu muitos mitos sobre o bicho, fiz força para acreditar nele, e porque não? Assim, ficava melhor conviver com as lendas, elas são pra isso mesmo, ninguém deverá buscar as verdades, as verdades destroem as boas histórias, “deixe estar para ver como fica”, frase do meu velho Saló, na sua imensa sabedoria. Agradeci imensamente ao véi Venâncio e saí de lá radiante, acho que muita gente não tinha o conhecimento que ganhei naquela tarde, valeu a pena ter que andar aquele tanto de lama para encontrar com o véi Venâncio.

Molar
Enviado por Molar em 17/05/2020
Reeditado em 17/05/2020
Código do texto: T6949958
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